A relevância do brincar para o desenvolvimento integral na Educação Infantil
Jaqueline Mila Lucena de Oliveira
Neuvane Gamero Andrade Guevara
Lucinéia Guevara Vieira
RESUMO
O brincar constitui-se como uma prática essencial para o desenvolvimento infantil, sendo reconhecido como um direito garantido em documentos nacionais e internacionais. Na Educação Infantil, o brincar assume função estruturante na aprendizagem, na formação da subjetividade, no desenvolvimento cognitivo, motor, social e emocional. Mais do que uma atividade recreativa, o brincar é uma forma de expressão, exploração e compreensão do mundo. Este artigo discute a importância do brincar no desenvolvimento infantil, analisando contribuições de autores como Vygotsky, Piaget, Wallon e Kishimoto, além de documentos normativos como BNCC e DCNEI. Abordam-se diferentes tipos de brincadeiras, seu papel no processo de aprendizagem, as interações sociais que se estabelecem no contexto lúdico e os desafios enfrentados pelas instituições para garantir o brincar de forma planejada e significativa. Evidencia-se que o brincar, quando intencionalmente mediado pelo professor, contribui para aprendizagens mais profundas, para o desenvolvimento da autonomia, da linguagem, da criatividade e das competências socioemocionais. O artigo também analisa as condições pedagógicas, estruturais e formativas necessárias para efetivar práticas lúdicas qualificadas nas instituições de Educação Infantil. Conclui-se que o brincar é uma prática indispensável, que exige reconhecimento, planejamento e valorização como eixo fundamental da educação das crianças pequenas.
Palavras-chave: Brincar. Desenvolvimento infantil. Educação infantil. Ludicidade. Aprendizagem.
Introdução
A infância é uma fase singular da vida humana, marcada por intensas descobertas, aprendizagens e transformações. Nesse período, o brincar destaca-se como uma forma privilegiada de expressão e de interação da criança com o mundo. Desde as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI/2009) até a Base Nacional Comum Curricular (BNCC/2017), o brincar é reconhecido como eixo estruturante do currículo, ao lado das interações. Essas normativas reforçam que a aprendizagem infantil ocorre de maneira integrada, por meio de experiências sensoriais, emocionais, corporais, cognitivas e sociais, nas quais o brincar tem papel central.
Historicamente, nem sempre o brincar ocupou lugar de destaque nas práticas educativas. Durante muito tempo, a Educação Infantil foi marcada por modelos assistencialistas ou por práticas de escolarização precoce que desconsideravam a natureza lúdica da infância. Apenas a partir de estudos de autorescomo Piaget, Vygotsky e Wallon é que o brincar passou a ser compreendido como atividade essencial ao desenvolvimento integral, possibilitando à criança construir simbolizações, elaborar emoções, internalizar regras, experimentar papéis sociais e desenvolver funções psicológicas superiores.
No contexto contemporâneo, com a expansão da Educação Infantil no Brasil, aumenta a necessidade de compreender o brincar como direito e como prática pedagógica. Não se trata de ver o brincar apenas como recreação ou passatempo, mas como elemento estruturador de aprendizagens significativas. A brincadeira potencializa autonomia, criatividade, resolução de problemas, imaginação, linguagem e desenvolvimento moral. Além disso, proporciona oportunidades para conviver, cooperar e negociar sentidos e regras com outras crianças, ampliando o repertório social.
Este artigo tem como objetivo discutir a importância do brincar no desenvolvimento infantil, especialmente no contexto da Educação Infantil, analisando fundamentos teóricos, aspectos pedagógicos, contribuições para diferentes dimensões do desenvolvimento e desafios para sua efetiva implementação. Também são apresentados exemplos de práticas lúdicas e reflexões sobre o papel do professor como mediador das experiências infantis.
Desenvolvimento
- Fundamentos teóricos do brincar
O brincar, como prática humana, é abordado por diversas correntes teóricas. Sob a perspectiva de Jean Piaget, a brincadeira está intimamente ligada ao desenvolvimento cognitivo. Para o autor, a criança aprende manipulando objetos, experimentando, repetindo ações e construindo esquemas mentais. O jogo simbólico é especialmente relevante na fase pré-operatória, pois permite à criança reproduzir situações reais, reorganizar experiências e desenvolver pensamento representacional.
Lev Vygotsky, por sua vez, atribui ao brincar uma função social e cultural. Para ele, o jogo simbólico cria uma zona de desenvolvimento proximal, ampliando possibilidades de aprendizagem. Ao brincar, a criança internaliza signos, regras e significados culturalmente produzidos, desenvolvendo atenção voluntária, memória, imaginação e linguagem.
Henri Wallon destaca o papel das emoções, do movimento e das interações nas brincadeiras. Para o autor, o jogo favorece a construção da afetividade e da personalidade, permitindo à criança experimentar, expressar desejos e elaborar conflitos.
Kishimoto, referência brasileira na área da ludicidade, reforça que o brinquedo é instrumento cultural que media aprendizagens e interações. A autora ressalta que o brincar não é apenas atividade espontânea, mas prática intencional que deve integrar o currículo da Educação Infantil.
Assim, as diversas abordagens teóricas convergem ao reconhecer o brincar como prática indispensável, que promove desenvolvimento cognitivo, social, emocional e cultural.
- O brincar como direito e princípio pedagógico
O brincar é reconhecido como direito no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no Marco Legal da Primeira Infância (2016) e nas DCNEI/2009. A BNCC reforça que a Educação Infantil deve oferecer experiências que envolvam situações lúdicas intencionais e espontâneas, garantindo às crianças oportunidades de:
explorar materiais, espaços e objetos;
experimentar diferentes modos de expressão;
brincar livremente e em atividades orientadas;
interagir com pares e adultos;
desenvolver autonomia e criatividade.
A garantia desse direito implica oferecer ambientes ricos, seguros, estimulantes e acessíveis, onde o brincar seja prática cotidiana.
- Tipos de brincadeiras e suas contribuições
3.1 Brincadeiras simbólicas
Permitem à criança representar o mundo social, dramatizar papéis e compreender relações humanas. São fundamentais para o desenvolvimento da imaginação, da linguagem e das funções simbólicas.
3.2 Jogos de regras
Desenvolvem habilidades como atenção, autocontrole, respeito às normas e tomada de decisões. Ao negociar regras, a criança aprende a conviver e a resolver conflitos.
3.3 Brincadeiras motoras
Estimula-se coordenação, equilíbrio, lateralidade e consciência corporal. Pular corda, correr, escalar e dançar são exemplos.
3.4 Brincadeiras com música e expressão artística
Contribuem para o desenvolvimento rítmico, sensorial e expressivo, além de fortalecer vínculos afetivos.
3.5 Brincadeiras de exploração
Possibilitam que a criança descubra propriedades físicas dos objetos, investigue e formule hipóteses.
- O brincar e o desenvolvimento cognitivo
O brincar potencializa processos como atenção, memória, imaginação, raciocínio lógico e criatividade. Ao manipular objetos, enfrentar desafios e resolver problemas, a criança constrói conhecimento de maneira ativa. As brincadeiras simbólicas, por exemplo, permitem a reorganização de experiências e a elaboração de conceitos.
Jogos que envolvem contagem, classificação e ordenação contribuem para o desenvolvimento matemático. A exploração de livros, histórias e brincadeiras de faz de conta favorece o desenvolvimento linguístico e narrativo.
- O brincar e o desenvolvimento socioemocional
Brincar é experimentar emoções. Alegria, frustração, cooperação, conflito, empatia e solidariedade emergem nas situações lúdicas. Durante o jogo, a criança aprende a negociar, a esperar sua vez, a lidar com perdas e a celebrar conquistas. Essas vivências fortalecem habilidades socioemocionais essenciais para a vida adulta.
- O papel do professor no brincar
No contexto da Educação Infantil, o professor desempenha um papel essencial na mediação das experiências lúdicas, atuando como organizador, observador e intencionalmente planejador do brincar. Longe de ser um espectador passivo, o docente precisa compreender que o brincar é uma atividade complexa, carregada de significados, através da qual as crianças interpretam o mundo, constroem relações, desenvolvem habilidades cognitivas, sociais e emocionais, e constroem sua autonomia. Nesse sentido, a mediação docente garante que o brincar se transforme em um espaço potente de aprendizagens integradas, sem perder sua espontaneidade e natureza livre.
A ação do professor inicia-se pela organização do ambiente, que deve ser rico, desafiador e esteticamente convidativo, oferecendo múltiplas possibilidades de exploração. Espaços bem planejados, com materiais acessíveis e variados — blocos, tecidos, objetos recicláveis, livros, brinquedos estruturados e não estruturados — estimulam a curiosidade, a imaginação e a experimentação das crianças. Além disso, ambientes organizados em cantos temáticos, como casinha, leitura, faz-de-conta, construção e artes, favorecem a autonomia e permitem que os pequenos escolham e criem a partir de seus interesses.
Outro aspecto central da mediação é a proposição de brincadeiras que ampliem aprendizagens. O professor pode sugerir jogos que promovam desenvolvimento motor, coordenação, cooperação, resolução de problemas e linguagem, sempre preservando o caráter lúdico. O planejamento intencional não significa conduzir rigidamente a atividade, mas sim oferecer desafios adequados, respeitando a lógica do brincar infantil. Dessa forma, a intervenção docente potencializa aprendizagens, mas sem transformar o brincar em tarefa mecânica ou atividade escolarizada.
A observação sensível é uma das competências mais importantes do professor na Educação Infantil. Ao acompanhar atentamente as brincadeiras, o docente compreende os interesses das crianças, as formas como se relacionam com os colegas, expressam emoções, resolvem conflitos e utilizam materiais. Essas observações são fundamentais para o planejamento pedagógico e permitem que o professor intervenha de maneira oportuna, ajudando quando necessário, abrindo novas possibilidades ou ajustando o ambiente.
O professor também deve favorecer interações entre pares, pois o brincar é um espaço privilegiado de socialização. Por meio do diálogo, da escuta e da facilitação de acordos, o docente ajuda as crianças a desenvolverem habilidades socioemocionais, como cooperação, empatia, respeito às regras e negociação de papéis. A intervenção nesses momentos visa promover convivência saudável, sem dominar a brincadeira ou impedir que as crianças encontrem soluções próprias para desafios e conflitos.
Outra dimensão importante é o registro e avaliação das experiências lúdicas. Documentar o brincar — por meio de fotos, portfólios, anotações, produções das crianças ou rodas de conversa — permite acompanhar o desenvolvimento dos pequenos e valorizar suas descobertas. Esses registros também subsidiam o planejamento de novas situações lúdicas, garantindo continuidade, diversidade e intencionalidade pedagógica.
Por fim, o professor deve sempre respeitar os tempos e ritmos das crianças, reconhecendo que cada uma brinca, explora e aprende de maneira singular. Isso implica permitir momentos de brincadeira livre prolongada, sem interrupções desnecessárias, e oferecer suporte adequado àquelas que precisam de auxílio para ingressar no jogo, compreender regras ou estabelecer interações com os colegas.
A mediação docente no brincar, portanto, exige sensibilidade, planejamento e conhecimento profundo sobre o desenvolvimento infantil. Agir com intencionalidade não significa controlar ou direcionar rigidamente a brincadeira, mas criar condições para que ela seja plena, significativa e enriquecedora. É essa postura que transforma o brincar em ferramenta pedagógica potente, promotora de aprendizagens integradas e do desenvolvimento integral das crianças na Educação Infantil.
- O brincar como eixo curricular na Educação Infantil
De acordo com BNCC e DCNEI, o currículo deve ser estruturado em experiências e não em conteúdos fragmentados. As brincadeiras constituem práticas que atravessam todos os campos de experiência:
O eu, o outro e o nós: convivência, cooperação, regras e vínculos.
Traços, sons, cores e formas: expressão artística e sensorial.
Corpo, gestos e movimentos: brincadeiras motoras e expressão corporal.
Escuta, fala, pensamento e imaginação: linguagem, narrativa e faz de conta.
Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações: exploração e investigação. Assim, o brincar integra todas as dimensões da educação infantil.
- Brincar e inclusão
O brincar, por sua natureza diversa, flexível e expressiva, constitui-se como uma das estratégias mais eficazes para promover a inclusão na Educação Infantil. Diferentemente de práticas pedagógicas rígidas e estruturadas, as brincadeiras permitem múltiplas formas de participação, respeitando ritmos, modos de agir, interesses e possibilidades de cada criança. Isso é particularmente importante para estudantes com deficiência, transtornos do neurodesenvolvimento ou necessidades educacionais específicas, que muitas vezes encontram barreiras em práticas escolares tradicionais. Assim, o brincar se torna um território fértil para que todas as crianças se expressem, explorem e interajam, construindo vínculos e aprendizagens de forma espontânea e prazerosa.
Uma das principais características que fazem do brincar um instrumento de inclusão é sua diversidade de linguagens. A criança pode participar por meio do gesto, do olhar, do movimento, da fala, do toque ou até mesmo de formas simbólicas próprias. Brincadeiras simbólicas, jogos motores, explorações sensoriais, música, dança, construção com blocos ou brincadeiras de imitação oferecem múltiplas portas de entrada para que cada criança se engaje de acordo com suas possibilidades. Essa multiplicidade reduz desigualdades cognitivas, linguísticas ou motoras, permitindo que todos vivenciem experiências significativas e se sintam pertencentes ao grupo.
O brincar inclusivo também depende de adaptações pedagógicas, que não buscam nivelar o desempenho, mas garantir acesso e participação. Os brinquedos acessíveis, por exemplo, desempenham papel fundamental. Eles podem incluir peças ampliadas, texturizadas, de fácil manipulação ou com estímulos visuais e sonoros distintos, possibilitando que crianças com baixa visão, dificuldades motoras ou transtornos sensoriais interajam com os materiais de maneira autônoma e prazerosa. Brinquedos feitos com materiais do cotidiano, como sucatas e elementos naturais, também podem ser adaptados de forma simples e criativa.
Além disso, a mediação específica do professor é essencial. A mediação não deve ser intervencionista a ponto de retirar a autonomia da criança, mas precisa ser sensível para reconhecer necessidades individuais e ajustar a proposta lúdica. Em alguns casos, o docente pode oferecer apoio físico ou gestual, modelar ações, ampliar a comunicação ou facilitar interações entre crianças, criando pontes que favoreçam a participação. A mediação qualificada promove não apenas o acesso à atividade, mas também a convivência e o reconhecimento das diferenças como parte do coletivo.
A organização de pequenos grupos também favorece a inclusão, pois permite que o professor acompanhe mais de perto as interações e ofereça apoio individualizado quando necessário. Grupos menores reduzem estímulos excessivos e evitam sobrecarga sensorial, beneficiando especialmente crianças com TEA (Transtorno do Espectro Autista) ou com dificuldades de autorregulação. Nesses grupos, é possível adaptar tempos, espaços e materiais, garantindo experiências ricas e acolhedoras.
Outro elemento importante é o suporte visual ou tecnológico, que auxilia na compreensão das regras e sequências das brincadeiras. Cartazes, pictogramas, agendas visuais, setas, cores ou recursos digitais simples podem orientar a criança sobre o que fazer, como participar e para onde se dirigir. Esse suporte é especialmente relevante para crianças com dificuldades de comunicação, déficit de atenção ou transtornos sensoriais, pois oferece previsibilidade e segurança. Tecnologias assistivas, como tablets com aplicativos de comunicação alternativa, podem ampliar ainda mais as formas de expressão e participação.
A flexibilização de regras é outra prática indispensável. Jogos e brincadeiras tradicionais podem ser adaptados para contemplar diferentes níveis de habilidade, considerando tempo, complexidade, número de etapas e objetivos. Essa flexibilidade não compromete a essência lúdica; ao contrário, reforça o caráter inclusivo do brincar. Crianças com dificuldades motoras podem participar de jogos de bola com distâncias reduzidas; crianças com TEA podem iniciar a brincadeira com regras simplificadas; crianças com deficiência intelectual podem contar com pistas visuais ou apoio verbal. O importante é que todas as crianças sintam-se capazes e pertencentes.
- Desafios contemporâneos para garantir o brincar
Apesar do reconhecimento crescente do brincar como eixo estruturante da Educação Infantil, sua efetivação no cotidiano escolar ainda enfrenta inúmeros desafios. A presença do brincar nos documentos oficiais não garante, por si só, práticas pedagógicas lúdicas e de qualidade. Na realidade das instituições, diversos fatores estruturais, culturais e pedagógicos dificultam que as crianças tenham acesso pleno ao direito de brincar, comprometendo experiências fundamentais para o seu desenvolvimento integral.
Um dos primeiros obstáculos é o excesso de rotinas escolarizantes, que substituem o brincar por atividades mecânicas, repetitivas e voltadas para a antecipação da alfabetização ou de conteúdos formais. Em muitas instituições, a pressão por “preparar para o Ensino Fundamental” leva professores e gestores a reduzirem o tempo destinado ao brincar espontâneo, organizando o dia com fichas, exercícios e tarefas que pouco dialogam com a natureza lúdica da Educação Infantil. Essa tendência desconsidera que aprendizagens significativas e profundas, inclusive as relacionadas à linguagem e ao pensamento lógico, emergem de experiências brincantes, investigativas e interativas.
Outro desafio presente é a pressão por resultados mensuráveis, impulsionada pela lógica das avaliações externas. Ainda que essas avaliações não se apliquem diretamente à Educação Infantil, a cultura da mensuração permeia o sistema educacional como um todo. Isso cria uma atmosfera de produtividade, desempenho e cumprimento de metas que se contrapõe ao tempo da infância, que é marcado pela experimentação, pela imaginação e pelo movimento. O brincar, por sua natureza processual e subjetiva, muitas vezes não se encaixa em indicadores imediatos, o que o torna menos valorizado em contextos que priorizam números e resultados rápidos.
A falta de formação docente sobre ludicidade também constitui entrave significativo. Muitos profissionais, formados em cursos que privilegiam teorias abstratas e conteúdos escolares tradicionais, não tiveram oportunidades de refletir sobre o papel do brincar na aprendizagem. Isso contribui para uma visão equivocada de que brincar é apenas recreação, e não prática pedagógica estruturante. Sem formação adequada, o professor pode sentir-se inseguro para planejar, mediar e avaliar situações lúdicas, deixando de explorar seu potencial educativo.
As condições materiais e estruturais das instituições também impactam fortemente o brincar. Em muitas escolas, há ambientes inadequados ou pouco estimulantes, com espaços reduzidos, ausência de áreas externas ou pátios insuficientemente equipados. Salas pequenas, sem diversidade de materiais manipulativos ou cantos temáticos, limitam a autonomia das crianças e reduzem oportunidades de exploração e movimento. A qualidade do ambiente físico é componente essencial para o brincar, e sua precariedade compromete a experiência infantil.
A organização das turmas representa outro desafio. Turmas grandes com poucos profissionais dificultam a observação, a mediação e o acompanhamento das interações entre as crianças. Em grupos muito numerosos, o professor encontra dificuldades para garantir que todas as crianças participem das brincadeiras de forma segura e significativa, o que leva, muitas vezes, à adoção de atividades mais controladas, em detrimento do brincar livre e da ludicidade.
A presença marcante das tecnologias digitais na vida contemporânea também traz impactos importantes. Embora as telas façam parte da cultura da infância, o excesso de tecnologias que substituem o brincar ativo tem reduzido o tempo destinado às brincadeiras motoras, criativas e simbólicas. Crianças que passam muitas horas diante de tablets, celulares ou televisores têm menos oportunidades de desenvolver habilidades socioemocionais, coordenação motora e criatividade. Nas escolas, o desafio é equilibrar o uso de tecnologias como ferramentas pedagógicas, evitando que ocupem o lugar de experiências brincantes essenciais.
Por fim, muitas instituições enfrentam falta de materiais, brinquedos e espaços externos, prejudicando a variedade e a qualidade das experiências. A ausência de brinquedos estruturados e não estruturados, como blocos, jogos, tecidos, instrumentos musicais, objetos de sucata e elementos naturais, limita a imaginação e a exploração. A pobreza de estímulos ambientais é incompatível com a proposta pedagógica da Educação Infantil prevista nos documentos legais.
Diante desses desafios, é evidente que assegurar o direito de brincar requer mais do que boas intenções individuais: exige políticas públicas robustas, que garantam infraestrutura física adequada, financiamento contínuo, contratação de profissionais suficientes e formação docente específica em ludicidade. É preciso ainda fortalecer uma gestão escolar eficaz, sensível às necessidades das crianças e disposta a reorganizar rotinas, espaços e tempos em favor de práticas mais lúdicas e participativas. A formação continuada é elemento chave, permitindo que professores compreendam a complexidade e o valor pedagógico do brincar, superando concepções reducionistas.
Garantir o brincar significa reconhecer sua potência para o desenvolvimento integral e para a construção de uma infância plena. Superar os desafios contemporâneos é compromisso coletivo, que envolve Estado, gestão, professores, famílias e sociedade. Somente assim será possível oferecer às crianças experiências ricas, diversas e significativas, nas quais o brincar seja, de fato, eixo estruturante da Educação Infantil.
Conclusão
O brincar é mais do que uma atividade recreativa: é um modo de ser e estar na infância, constituindo-se como prática fundamental para o desenvolvimento cognitivo, social, emocional, motor e simbólico. Na Educação Infantil, o brincar adquire status pedagógico, sendo reconhecido como direito e como eixo estruturador do currículo. Diversas teorias do desenvolvimento humano ressaltam que, por meio do brincar, a criança constrói significados, internaliza regras sociais, desenvolve linguagem, exercita imaginação, elabora emoções e aprende a se relacionar com outras pessoas.
Para que o brincar cumpra seu papel educativo, é necessário que o professor assuma a mediação intencional, promovendo ambientes estimulantes, organizando tempos e espaços e valorizando a espontaneidade infantil. A ludicidade, entendida como forma de expressão e de aprendizagem, deve orientar práticas pedagógicas que respeitem a natureza da criança, seus interesses, ritmos e modos de agir.
Entretanto, garantir o brincar na Educação Infantil implica enfrentar desafios estruturais, culturais e pedagógicos. É fundamental superar práticas escolarizantes, assegurar formações continuadas, melhorar espaços físicos e defender políticas públicas que valorizem a infância e o lúdico.
Conclui-se que o brincar é indispensável para o desenvolvimento integral e para a construção de uma educação humanizadora, inclusiva e significativa. Valorizar o brincar é reconhecer a criança como sujeito de direitos, protagonista de seu processo de aprendizagem e cidadã competente capaz de produzir cultura e conhecimento.
Referências
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017.
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: MEC/CNE, 2009.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Lei n. 8.069/1990.
BRASIL. Marco Legal da Primeira Infância. Lei n. 13.257/2016.
KISHIMOTO, T. M. Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez, 2010.
PIAGET, J. A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: LTC, 1990.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
WALLON, H. A evolução psicológica da criança. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

