Documentação estético-participativa como eixo integrador: quando o atelier, a aprendizagem em grupo e a escuta viram avaliação formativa na Educação Infantil
Letícia Carvalho Silva Marques
Sâmela Siqueira Oliveira
RESUMO
Este artigo identifica um ponto de convergência entre três referenciais inspirados na experiência de Reggio Emilia: a documentação pedagógica, o espaço/atelier como “terceiro educador” e a aprendizagem em grupo. Deste modo transformando estes três em um método aplicável de avaliação formativa na Educação Infantil. Argumentamos que a documentação estético-participativa é o elo que articula escuta, ambiente e colaboração infantil, convertendo vestígios em decisões pedagógicas públicas. Propomos o método PAREDE (Planejar com as crianças; Ateliê em ação; Registros multimodais; Edições curatoriais; devolutivas públicas; Encaminhamentos do espaço) e indicadores de qualidade alinháveis à BNCC. Dialogamos com produções brasileiras sobre planejamento centrado na criança e sobre lacunas entre discurso de escuta e prática, reforçando participação efetiva. Ao final, descrevemos ganhos curriculares, de transparência e de justiça avaliativa.
Palavras-chave: Reggio Emilia; documentação pedagógica; atelier; participação das crianças; avaliação formativa; BNCC.
Introdução
No campo da Educação Infantil, cresce o consenso de que a avaliação deve ser formativa, processual e pública, com foco na criança como sujeito de direitos e produtora de cultura. Experiências brasileiras enfatizam planejamento com a criança em foco e compromisso com qualidade, deslocando o olhar do procedimento para a autoria infantil.
Também se reconhece que a potência dessa virada depende de escuta e participação realmente efetivadas a partir de oportunizar previamente as crianças suas descobertas e vivências, um ponto onde práticas ainda tropeçam, mantendo a escuta na oralidade e pouca acolhida em outras linguagens das crianças.
Nas escolas inspiradas por Reggio Emilia, três ideias se interpenetram:
a) Documentação pedagógica como interpretação pública de processos, distinta do mero registro;
- b) Ambiente/atelier como terceiro educador;
- c) Aprendizagem em grupo como construção distribuída.
Tais princípios sustentam que documentar é educar, e que o fazer avaliativo acontece quando os percursos se tornam visíveis e debatíveis por crianças, docentes e famílias.
Deste modo sustentamos que a documentação estético-participativa é o ponto específico de diálogo entre os três eixos (documentação, ambiente/atelier e grupo): é ela que transforma o espaço em linguagem avaliativa, o grupo em autor coletivo e a escuta em decisões curriculares.
Documentação ≠ registro: curadoria de processos
Na perspectiva reggiana, o registro é matéria-prima; a documentação emerge quando há interpretação articulando vestígios, perguntas e decisões possibilitando “ver” a aprendizagem para além de provas e tarefas e reconhecendo a criança como potente, criativa e criadora.
Como prática, ela fornece critérios espaciais (flexibilidade, intenção pedagógica, legibilidade pública) para que o próprio ambiente documente.
Espaço/atelier como terceiro educador
Os tempos e espaços materializam concepções de infância e de educação; não são neutros. Por isso, repensá-los, desnaturalizando a sala, é condição para pôr a criança no centro das decisões e para criar rotinas flexíveis que respeitem investigações longas e autônomas, essa é a ideia sintetizada na imagem do “terceiro educador”.
Aprender em grupo, tornar público
O trabalho com grupos visa produtos públicos (murais, portfólios, instalações) e depende de planejamento como atitude relacional, mais do que roteiro fechado: mergulhar com as crianças na aventura de perguntar, criar e ler o mundo, em lugar de “atividades burocráticas”, seguir a liderança da criança, não ser refém, mas pensar na curiosidade das crianças, pensar em seus interesses próprios de aprendizagens.
Esse horizonte brasileiro converge com o chamado a projetos coletivos e com a centralidade do encontro e do encantamento no cotidiano da Educação Infantil.
Método PAREDE: documentação estético-participativa como avaliação formativa
Propomos um método aplicável em turmas de 2–4 anos que integra os três eixos. Cada ciclo dura 2–4 semanas e se ancora em uma pergunta geradora emergente das crianças.
P — Planejar com as crianças
Levantamento de interesses por múltiplas linguagens (conversa, desenho, gesto, som). Planejamento aberto ao imprevisível, com objetivos de experiência, não de conteúdos seriados (planejamento como atitude)
A — Ateliê em ação
Organização do espaço como terceiro educador: materiais variados, acessíveis e esteticamente dispostos; rotinas flexíveis para sustentar investigações longas; adultos como pesquisadores e “escribas”.
R — Registros multimodais
Fotos, vídeos curtos, transcrições de falas, mapas de ação, recolha de traços (Diferenciar registro de documentação, guardando contexto, hipóteses, decisões).
E — Edições curatoriais
Docentes e crianças editam painéis com sequência: contexto → pergunta → hipóteses infantis → vestígios → interpretações → próximos passos. Os painéis obedecem a critérios de legibilidade, intenção pedagógica e atualização contínua.
D — Devolutivas públicas
Rodas de leitura das documentações com crianças e famílias; crianças releem e acrescentam camadas (desenhos, legendas,) fortalecendo participação para além da linguagem oral dominante apontada nas pesquisas.
E — Encaminhamentos do espaço
O ambiente muda: o que se aprendeu reorganiza cantos, tempos e materiais evidenciando que espaço e avaliação são uma só ecologia
Indicadores de qualidade
Centralidade infantil: decisões visíveis que nasceram de hipóteses das crianças;
Coerência documentação-espaço: painéis legíveis, não decorativos, com propósito pedagógico
Participação plural: presença de múltiplas linguagens (imagem, gesto, som, escrita);
Temporalidade viva: rotinas flexíveis que não interrompem experiências significativas.
Produto público: portfólios/painéis próximos a porta de sala, boletim informativo digital nos grupos de whatssap que sustentam diálogo com famílias e a comunidade.
Discussão e resultados
Com a documentação, a avaliação deixa de medir resultados finais e passa a negociar sentidos articulando vestígios a interpretações e a decisões curriculares abertas.
Com o atelier e o espaço, a documentação ganha suporte estético-material: paredes, mesas e cantos “falam” e tornam a aprendizagem legível ao coletivo que é a condição do “terceiro educador”.
Com o grupo, a própria curadoria vira tarefa compartilhada e o planejamento se torna atitude relacional e investigativa, não uma sequência burocrática, ou currículo a se cumprir.
Esse trio dialoga ainda com a necessidade brasileira de planejamento com a criança no centro e com a superação da distância entre discurso de escuta e participação efetiva, identificada em investigações em creches públicas.
A proposta reafirma que não se copia Reggio: inspira-se, contextualiza-se e produz-se práxis situada, em diálogo com a BNCC e com a história da Educação Infantil no Brasil.
Alinhamentos à BNCC (síntese operativa)
Direitos de aprendizagem: conviver, brincar, participar, explorar, expressar, conhecer-se todos atravessados pela documentação pública dos percursos.
Campos de experiências: “Traços, sons, cores e formas” e “O eu, o outro e o nós” se materializam nos produtos coletivos (instalações, painéis) e nas devolutivas comentadas com crianças e famílias.
Avaliação: contínua, qualitativa e participativa; a documentação substitui checklists fechados por narrativas de aprendizagem (percurso, hipóteses, decisões).
Limitações e pesquisas futuras
A adoção coerente do método exige tempo de estudo docente e condições de trabalho para curadoria e requer também formação inicial/continuada que integre cuidado e educação e supere o foco excessivo de escolarizar as crianças principalmente da fase creche, um desafio destacado na literatura nacional.
Conclusão
Quando documentação, atelier e grupo se encontram sob a lógica da estética participativa, a avaliação vira ato público de cuidado e justiça: a escola passa a se explicar para as crianças e com elas. O método PAREDE oferece um caminho simples e potente para começar amanhã não como cópia, mas como inspiração situada. Isso é pedagógico, é político e é belo.
Referências
OLIVEIRA, Carla de. Abordagem Reggio Emilia na Educação Infantil. Curitiba: IESDE Brasil, 2023. (usada para fundamentos sobre documentação, espaço e BNCC).
REGGIO CHILDREN; PROJECT ZERO. Tornando visível a aprendizagem: crianças que aprendem individualmente e em grupo. São Paulo: Phorte, 2014. (usada para participação e cultura da infância).
GRUPO EDUCACIONAL FAVENI. A cultura da infância em Reggio Emilia. FAVENI, 2021. (usada para referencias sobre atelier e poéticas da aprendizagem).
OSTETTO, Luciana E. (org.). Encontros e encantamentos na Educação Infantil: partilhando experiências de estágios. Campinas: Papirus, 1997. (usada para planejamento centrado na criança e compromisso com qualidade).
FROTA, A. M. M. C.; MORAES, R. R. A.; CYSNE, J. B. (org.). Infâncias, crianças, Educação Infantil: diferentes olhares. Fortaleza: EdUECE, 2020. (usada para escuta/participação e panorama teórico).

