Entre política, currículo e prática: convergências e tensões da alfabetização no Brasil
Regiane Sales Ribeiro
Luiz Fernando Pereira de Almeida
Resumo
O artigo analisa pontos de diálogo entre três documentos recentes e complementares sobre alfabetização no Brasil: a agenda “Educação Já 2022 Alfabetização” (Todos Pela Educação, Instituto Natura e Fundação Lemann), um estudo sobre a adequação de documentos curriculares municipais (Lima & Martins, 2024) e o caderno pedagógico “Alfabetização e Letramento” (UDESC/CEAD/UAB). Argumenta-se que há convergência em torno da meta de alfabetização até o 2º ano e da necessidade de políticas sistêmicas em regime de colaboração; identificam-se, porém, tensões normativas (PNE/BNCC/PNA) que repercutem no nível local, produzindo orientações curriculares heterogêneas. Propõe-se uma síntese operativa que articule: (i) clareza de metas e fatores de sucesso em colaboração Estado–municípios; (ii) coerência normativa entre BNCC, programas federais e legislações locais; (iii) práticas pedagógicas que “alfabetizem letrando”, contemplando múltiplos letramentos. Conclui-se com um conjunto de recomendações para desenho de políticas, gestão curricular e organização do trabalho docente.
Palavras-chave: Alfabetização. Letramento. Políticas públicas. BNCC. Currículo municipal. Formação docente.
Introdução
A alfabetização no Brasil tem sido tratada simultaneamente como prioridade pedagógica e agenda de política pública. A visão sistêmica proposta por “Educação Já 2022 Alfabetização” parte de um diagnóstico de baixo desempenho histórico, agravado na pandemia, e defende a coordenação Estado/municípios por fatores de sucesso articulados, evitando ações fragmentadas. Esse documento centraliza a meta: alfabetizar todas as crianças até o fim do 2º ano do ensino fundamental. No plano curricular local, Lima e Martins (2024) mostram como municípios reelaboram suas propostas à luz da BNCC e de novas políticas (PNA, CNCA), revelando convergências e desencontros que incidem sobre concepções e tempos de alfabetização e geram orientações por vezes contraditórias ao professor.
No campo didático, o caderno “Alfabetização e Letramento” reafirma a concepção de alfabetizar letrando, situando a aprendizagem da escrita em práticas sociais de leitura e escrita e defendendo o trabalho com múltiplos letramentos.
Há uma linha de continuidade na fixação de metas: PNE/Meta 5 (2014) indicava alfabetizar até o 3º ano; a BNCC (2017) antecipou a alfabetização para o 2º ano; o CNCA (2023) reafirma essa diretriz.
Contudo, a PNA (2019) prioriza alfabetização já no 1º ano, enquanto a BNCC define o ciclo de alfabetização nos dois primeiros anos—um desalinhamento normativo que repercute na adequação dos documentos estaduais e municipais.
Lima e Martins registram que tais descontinuidades e sobreposições de políticas comprometem a estabilidade do planejamento e a transformação de iniciativas em políticas de Estado, com ciclo completo de elaboração, implementação, avaliação e ajuste.
Esse ponto ajuda a explicar por que redes locais convivem com guias e programas que, embora inspirados na BNCC, operam prazos e ênfases distintos (ex.: antecipação no 1º ano versus consolidação no 2º/3º anos).
Políticas em regime de colaboração: evidências e fatores de sucesso
“Educação Já 2022” compila a experiência do Ceará e indica sete fatores de sucesso para políticas de alfabetização em regime de colaboração: compromisso técnico-político; desenho e legitimidade; cooperação e incentivos; governança participativa; engajamento pelo diálogo; fortalecimento da aprendizagem; avaliação e monitoramento articulados a uma meta central clara.
O documento insiste que transformações sustentáveis exigem coordenação de múltiplas intervenções, evitando uma soma de iniciativas isoladas.
Também observa limites de iniciativas nacionais anteriores (como o PNAIC), que focaram fortemente a dimensão pedagógica, sem equalizar incentivos, governança e engajamento político, o que ajuda a entender por que resultados de alfabetização pouco avançaram em certos períodos.
Currículo municipal: alinhamentos e desencontros
No plano local, os estudos sobre Porto Velho/RO mostram um esforço de reelaboração curricular alinhado à BNCC, com processos participativos entre SEDUC e Undime, para garantir progressão de competências e equidade no acesso ao conhecimento.
Em paralelo, programas municipais como o “Alfabetiza Porto Velho” explicitam metas por ano e “perfis de saída” detalhados (consciência fonológica, fluência, decodificação, produção de textos), visando 100% alfabetizados no 2º ano e consolidação no 3º.
Ainda assim, Lima e Martins sublinham que a coexistência de BNCC, PNA e programas correlatos produz “discordâncias” temporais e conceituais (prazos, definição de alfabetização e ênfases metodológicas), gerando desafios de orientação ao professor alfabetizador.
Práticas pedagógicas: alfabetizar letrando e múltiplos letramentos
No âmbito didático, o caderno UDESC enfatiza que alfabetizar não se reduz à decodificação: envolve inserir o estudante nas práticas sociais de leitura e escrita (eventos de letramento) e trabalhar com múltiplos letramentos, inclusive os dominantes e vernaculares, superando uma visão escolar restrita.
Em termos de objetivos formativos, propõe construir competências linguísticas e textuais que sustentem uma participação cidadã em diferentes esferas de atividade.
Esse enfoque se alinha às metas e aos “perfis de saída” municipais que explicitam consciência fonológica, fluência leitora e produção textual como alvos mensuráveis, desde que tais metas sejam integradas a experiências de uso real da língua e a gêneros relevantes (bilhete, carta, textos digitais, apresentações orais).
Síntese de diálogo entre os três referenciais
Meta temporal e foco por ciclo: alfabetização até o 2º ano, com consolidação no 3º (BNCC/CNCA; metas municipais). Abordagem sistêmica: políticas em regime de colaboração, articulando desenho institucional, incentivos, monitoramento e suporte técnico. Concepção didática: “alfabetizar letrando” e trabalhar múltiplos letramentos.
Desalinhamento normativo (PNE/BNCC/PNA) produz “discordâncias” e instabilidade para a gestão curricular local. Histórico de políticas com ênfase pedagógica sem a devida arquitetura de governança e incentivos, limitando impactos agregados. Implicações para política, currículo e sala de aula
Política pública (estadual/federal):
– Adotar explicitamente os sete fatores de sucesso como critérios de desenho e avaliação das políticas de alfabetização, assegurando marcos legais, planejamento de longo prazo e apoio técnico customizado aos municípios.
Clarificar normativamente a relação BNCC–PNA–CNCA para evitar orientações conflitantes de prazos e ênfases. Manter perfis de saída e metas anuais, articulando-os a matrizes de avaliação formativa (decodificação, fluência, compreensão, produção textual), e a processos de recuperação paralela no 2º/3º anos.
Reforçar a governança local em colaboração com o Estado (Undime/SEDUC), garantindo formação continuada coerente com o documento curricular e com a meta comum (2º ano). Planejar sequências didáticas que integrem consciência fonológica, correspondências grafofonêmicas, fluência e compreensão com gêneros reais e projetos de letramento (cartas, e-mails, apresentações orais, receitas, avisos), assegurando multiletramentos. Considerar a oralidade como modalidade constitutiva, articulada à escrita em eventos de letramento, evitando dicotomias simplificadoras.
Conclusão
O diálogo entre os três materiais evidencia um núcleo de consensos (meta no 2º ano; colaboração Estado–municípios; perspectiva de letramento) e aponta a necessidade de resolver desalinhamentos normativos que dificultam a coerência entre políticas, currículo e prática. Tomar os fatores de sucesso como bússola de desenho e implementar currículos municipais com metas claras e perfis de saída, sustentados por práticas de “alfabetizar letrando”, configura um caminho promissor para elevar a taxa de alfabetização com equidade no país.
Referências
Educação Já 2022. Alfabetização: Recomendações de políticas de alfabetização para os governos federal e estaduais. Todos Pela Educação, Instituto Natura e Fundação Lemann.
Lima, L. F.; Martins, E. C. S. Alfabetização e letramento: possibilidades e/ou limites dos documentos curriculares municipais. Editora Bagai, 2024.
Martins Filho, A. J. et al. Alfabetização e Letramento (Caderno Pedagógico). UDESC/CEAD/UAB, 2012.

