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Cuidar e educar de 0 a 3 anos: fundamentos, organização do cotidiano e implicações para a qualidade em creches

Letícia Carvalho Silva Marques

Sâmela Siqueira Oliveira

 

DOI: 10.5281/zenodo.17517120

 

 

RESUMO

Este artigo apresenta uma revisão narrativa e propositiva sobre a educação de bebês e crianças pequenas (0–3 anos) em creches, articulando duas obras de referência: Educação de 0 a 3 anos: o atendimento em creche (Elinor Goldschmied & Sonia Jackson) e o documento “Os cuidados com bebês e crianças pequenas nas creches”. Defende-se a indissociabilidade entre cuidado e educação, o papel do educador-referência e a centralidade do brincar com destaque para dispositivos clássicos como Cesto de Tesouros e Brincar Heurístico na organização do ambiente, das rotinas e da observação pedagógica. A síntese culmina em um quadro operacional para gestão e prática docente: princípios, critérios de ambientes, desenho de rotinas com intencionalidade, e indicadores observáveis para planejamento e avaliação. Conclui-se que qualidade em creche depende de vínculos estáveis, ambientes ricos e legíveis, rotinas que ensinam, e uma cultura institucional que documenta processos para replanejar.

 

Palavras-chave: Educação infantil. 0–3 anos. Cuidado e educação. Educador-referência. Cesto de Tesouros. Brincar heurístico. Rotina pedagógica.

 

 

  1. Introdução

 

No campo da primeira infância, “cuidar” e “educar” passaram de esferas separadas a uma visão integrada cada decisão de cuidado é decisão pedagógica (alimentação, sono, higiene, acolhida, transições). O debate internacional e as políticas de primeira infância reconheceram que o foco não é apenas a oferta de vagas, mas a qualidade das experiências vividas pelas crianças, com atenção às condições de trabalho das equipes e às parcerias com as famílias.

Este artigo articula duas fontes centrais no Brasil: a tradução de Goldschmied & Jackson, que converte achados de psicologia do desenvolvimento em critérios concretos de ambiente e rotina, e o documento “Os cuidados com bebês e crianças pequenas nas creches”, que sistematiza diretrizes para o contexto nacional. A partir delas, propomos um modelo de qualidade para creches, com implicações de gestão, formação docente e avaliação.

 

 

  1. Fundamentos: o que significa qualidade para 0–3?

 

 

2.1. Indissociabilidade entre cuidar e educar

 

A superação da “cisão perniciosa” entre cuidado e educação é marco conceitual do campo: políticas e programas de primeira infância estabeleceram que o cuidado é educacional, e a educação requer cuidado não há desenvolvimento sem bem-estar, previsibilidade e vínculos.

 

 

2.2. Educador-referência e vínculo estável

 

Para bebês e crianças que caminham, um adulto de referência garante segurança emocional, leitura consistente de sinais idiossincráticos e mediações coerentes ao longo do dia. A referência fortalece a comunicação com as famílias e dá lastro às aprendizagens em rotinas (troca, alimentação, sono, transições).

 

 

2.3. Ambientes que convidam e ensinam

 

Goldschmied & Jackson traduzem qualidade ambiental em critérios concretos: estética simples e funcional, materiais abertos (não só brinquedos prontos), legibilidade de cantos (acolhida, exploração, leitura, repouso) e mobiliário estável na escala da criança. Tais elementos sustentam autonomia motora, concentração e exploração significativa.

 

 

2.4. Brincar como eixo do currículo

 

O brincar, em 0–3, não é ocioso: é o currículo central. Dois dispositivos estruturantes destacam-se: Cesto de Tesouros (6–12 meses) e Brincar Heurístico (12–24 meses). O primeiro organiza sessões de exploração sensório-motora com 30–60 objetos cotidianos/naturais; o segundo amplia as combinações (encher, esvaziar, enfiar, classificar) com muitos recipientes. São práticas de alta densidade educativa, seguras quando bem selecionadas e higienizadas, e com papel do adulto centrado em observar, garantir segurança e nomear com parcimônia, registrar o que se observa e a partir disso planejar novamente seguindo o interesse para proporcionar novas descobertas para a criança.

 

 

  1. Rotinas que ensinam: desenho pedagógico do cotidiano

 

Rotinas são momentos de linguagem, participação e cultura. Na alimentação, a criança pode escolher entre duas opções, segurar talheres, servir-se e nomear alimentos/utensílios; na higiene/troca, o adulto antecipa a ação (“vou pegar a fralda”), mantém olho-no-olho e convida a participação; no sono, cria-se ritual curto e previsível com objeto de apego e iluminação suave. Tais microcontingências ensinam turnos, vocabulário funcional, autonomia e autorregulação.

 

 

  1. Observação, documentação e replanejamento

 

Qualidade não se sustenta sem olhar profissional: observar o que a criança faz (ações, tentativas, expressões), com quem (interações, co-ação, proximidade), com o quê (materiais, suportes) e por quanto tempo (envolvimento). A documentação breve, ética e verdadeira  retroalimenta o replanejamento do ambiente e das propostas. Na tradição de Goldschmied, observar é dar tempo e resistir à instrução prematura quando a criança está imersa em exploração focada, é porque houve observação e planejamento de acordo com o interesse da criança.

 

 

  1. Quadro operacional de qualidade (gestão e sala)

 

 

5.1. Princípios institucionais

 

1- Cuidar=Educar: todas as rotinas têm objetivos de aprendizagem explícitos.

2- Referência e previsibilidade: equipe estável e rituais reconhecíveis.

3- Ambiente preparado: materiais abertos e cantos legíveis.

4- Brincar estruturante: Cesto de Tesouros (6–12m), Brincar Heurístico (12–24m), faz-de-conta simples (24–36m).

5- Parceria com famílias: comunicação não paternalista, devolutivas claras.

 

 

5.2. Critérios de ambiente

 

- Iluminação aconchegante; cores harmônicas; mobiliário na escala da criança.

- Materiais: madeira, metal, tecido, naturais; variedade de pesos/sons/temperaturas.

- Cantos: acolhida, exploração com recipientes, leitura, repouso; circulação livre.

 

 

5.3. Rotina com intencionalidade (exemplos)

 

1- Alimentação: “escolher entre dois”, “servir”, “nomear” → objetivos: linguagem funcional, turnos, autonomia.

2- Troca: “antecipar e narrar”, “olho-no-olho” → objetivos: vínculo, previsibilidade, cooperação.

3- Sono: “ritual curto”, “objeto de apego” → objetivos: autorregulação, segurança.

 

 

5.4. Indicadores observáveis (para planejar e avaliar)

 

- Envolvimento (exploração contínua; retorno ao material).

- Autonomia (inicia/encerra atividades; pequenas escolhas; pede ajuda).

- Linguagem (gestos, balbucio com intenção, palavras de rotina).

- Interação (proximidade, troca, co-ação; resolução simples de conflitos).

 

 

  1. Segurança e qualidade sanitária nos materiais de exploração

 

Críticas usuais ao Cesto de Tesouros “anti-higiênico”, “perigoso” — são respondidas com procedimentos de seleção, limpeza e reposição: objetos laváveis/secáveis/descartáveis; substituições programadas; exclusão de itens cortantes ou muito pequenos; supervisão constante. O argumento central é que bebês entediados e sem materiais estimulantes ficam apáticos; materiais bem cuidados não aumentam risco em relação aos brinquedos comerciais.

 

 

  1. Discussão

 

As duas fontes convergem em três eixos estruturantes: (i) vínculos estáveis e clima emocional seguro; (ii) ambientes ricos e legíveis que convidam à exploração autônoma; (iii) rotinas que ensinam, nas quais o adulto narra, nomeia e dá tempo à criança. A especificidade de Goldschmied está em operacionalizar esses princípios em procedimentos replicáveis (Cesto de Tesouros e Brincar Heurístico), enquanto o documento brasileiro alinha tais princípios às condições e cultura institucional locais, enfatizando cuidado, ética e parceria com famílias.

Implicações:

- Gestão: estabilidade de equipes; tempos protegidos para observação/planejamento; curadoria sistemática de materiais.

- Formação docente: estudo guiado de sessões de exploração; treinos de observação e de “linguagem do cuidado”.

- Avaliação: uso regular de indicadores observáveis para replanejar ambientes e rotinas, evitando focar apenas em “produtos”.

Limitações: revisão baseada em duas fontes-chave; recomenda-se triangulação com estudos empíricos recentes (observacionais e ensaios de qualidade ambiental na Creche).

 

 

  1. Conclusão

 

Garantir qualidade na creche de 0 a 3 anos significa assumir que a aprendizagem nasce do cuidado e que o cuidado é uma pedagogia cotidiana. Vínculos estáveis, ambientes legíveis e ricos, rotinas que ensinam e um trabalho docente que observa e replaneja formam o núcleo duro da excelência. Com uma gestão que assegura tempos, materiais e formação, e com avaliação formativa regular, é possível construir experiências de bem-estar, participação e desenvolvimento consistentes, que também fortalecem a confiança das famílias na instituição.

 

 

Referências

 

GOLDSCHMIED, E.; JACKSON, S. Educação de 0 a 3 anos: o atendimento em creche. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. (trad. de People under three: young children in day care, Routledge, 2004).

 

GONZALEZ-MENA, Janet; EYER, Dianne Widmeyer. O cuidado com bebês e crianças pequenas na creche: um currículo de educação e cuidados baseado em relações qualificadas. Porto Alegre: Penso, 2014.