O Golpe Civil-Militar de 1964: articulações conservadoras, repressão e resistência no Brasil autoritário
Andréa Bezerra Ferreira
Dayane Ferreira Amaral Côrtes
Flávia Michelle Ferreira Oliveira
Lígia Mara Ormond Pereira
Maria José Nunes Mota
Resumo
O golpe civil-militar de 1964 representou uma ruptura institucional planejada por forças conservadoras civis e militares, que reagiram às propostas reformistas do governo de João Goulart. O episódio, sustentado por interesses das elites agrárias, empresariais e internacionais, foi legitimado pelo discurso anticomunista e amplamente apoiado pela grande imprensa e pela Igreja Católica. O regime instaurado promoveu repressão política, censura, tortura e concentração de renda, consolidando uma cultura autoritária que perdura no Brasil contemporâneo. Contudo, a resistência social e cultural, protagonizada por movimentos estudantis, sindicais, artísticos e religiosos, foi determinante para o enfraquecimento da ditadura e a posterior redemocratização. O estudo evidencia que compreender o golpe de 1964 é essencial para fortalecer a memória histórica e prevenir o ressurgimento de práticas autoritárias, reafirmando a importância da democracia e dos direitos humanos no cenário atual.
Palavras-chave: Golpe de 1964. Ditadura militar. Autoritarismo. Resistência. Redemocratização. Memória histórica.
- INTRODUÇÃO
O golpe civil-militar de 1964 representou um marco na história republicana brasileira, resultado de uma articulação complexa de forças sociais, econômicas e ideológicas (Chiavenato, 2012). Longe de ser um evento fortuito, expressou a reação conservadora diante das reformas propostas pelo governo João Goulart, que ameaçavam interesses das elites agrárias, industriais e financeiras (Toledo, 2004; Furtado, 1964).
A concepção do golpe como “revolução” ou “contragolpe” tem sido contestada por parte da historiografia crítica, que evidencia seu caráter autoritário e a atuação coordenada de setores civis, militares e internacionais na derrubada do governo constitucional (Joffily, 2018; D’Araújo; Soares; Castro, 2014). Consolidado o regime, instauraram-se práticas repressivas, censura e um modelo econômico excludente, que aprofundou desigualdades e subordinação externa (Freitas, 2004; Viana, 2005; Napolitano; Luvizotto; José, 2014).
Este estudo propõe examinar as causas, os desdobramentos e os legados do golpe de 1964, valorizando a análise das resistências sociais e culturais e a importância da memória histórica como fundamento para a consolidação democrática (Sanfelice, 1985; Secco, 2011; Wasserman, 2006). A metodologia adotada pauta-se na análise documental e em referenciais da historiografia crítica (Lakatos; Marconi, 2017).
- DESENVOLVIMENTO
2.1. A CONVERGÊNCIA DAS FORÇAS CONSERVADORAS E A GÊNESE DO GOLPE
O golpe militar de 1964, que depôs João Goulart em 1º de abril, resultou de uma complexa rede de alianças conservadoras (Alves, 2014). Apresentado como "Revolução" pelos militares, é classificado por historiadores como golpe ou contragolpe (Joffily, 2018). A convergência ocorreu pela percepção do governo Goulart e reformas de base como ameaça ao status quo (Alves, 2014; Da Silva Santos; Da Costa, 2019).
As forças conservadoras incluíram: setores militares, motivados pelo anticomunismo e defesa da hierarquia, vendo a intervenção como "ação reativa" contra "caos e desordem" (Codato, 2004, p. 19); empresariado nacional e internacional, céticos às reformas e unidos em "coalizão conservadora" através do IPES, que recebeu financiamentos externos (Alves, 2014; Chiavenato, 2012; Da Silva Santos; Da Costa, 2019); Igreja Católica conservadora, temendo o comunismo ateu e organizando as "Marchas da Família com Deus pela Liberdade" (Alves, 2014; Kushnir, 2014); classe média, ameaçada pela mobilização popular e "cúmplice do golpe" (Ridenti, 2004; Da Silva Santos; Da Costa, 2019); Estados Unidos, promovendo "campanha de desestabilização" via CIA e financiando IBAD e IPES no contexto da Guerra Fria (Alves, 2014,; Domingos; Charqueadas, 2016); e partidos conservadores (UDN, PSD) com posicionamento golpista anterior (Sanfelice, 1985).
A grande imprensa desempenhou papel fundamental propagando o "fantasma do comunismo", com jornais como Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo legitimando o golpe (Da Silva Santos; Da Costa, 2019; Vicente, 2014). O golpe foi justificado como combate à corrupção e "ideologias contrárias às tradições" (Martins; Leandro Filho, 2014), caracterizado como "contragolpe" contra supostas ações da esquerda (Freitas, 2004).
2.2. AS IMPLICAÇÕES DO GOLPE: REPRESSÃO, REESTRUTURAÇÃO E LEGADOS DO AUTORITARISMO
O regime militar degradou sistematicamente a democracia brasileira (Chiavenato, 2012). O AI-5 de 1968 concentrou poderes, cassou mandatos e institucionalizou a repressão (Chiavenato, 2012; Codato, 2004). Consolidou-se um Estado policial através do SNI e DOI-Codi, baseado em tortura e desaparecimentos, enquanto a censura inviabilizou o debate público (Chiavenato, 2012; Freitas, 2004).
Economicamente, o "milagre econômico" ocorreu mediante achatamento salarial, concentração de renda e abertura ao capital estrangeiro, beneficiando apenas parcela da população e expandindo a dívida externa (Chiavenato, 2012; Viana, 2005; Wasserman, 2006). A Doutrina de Segurança Nacional criminalizou movimentos sociais e despolitizou a sociedade (Chiavenato, 2012; Pinheiro, 2019).
O legado autoritário permanece após a redemocratização, manifestando-se no conservadorismo institucional e na fragilidade democrática. Como demonstram Pançardes e Pinheiro:
A repressão sistemática, o fechamento do Congresso Nacional, a censura à imprensa e às artes, bem como o uso da tortura como método de contenção da oposição política, criaram as bases para uma cultura autoritária que persiste até os dias atuais. Esse legado autoritário está presente não apenas nas estruturas institucionais, mas também nas formas como a sociedade brasileira lida com o dissenso, a pluralidade e os conflitos sociais (Pançardes; Pinheiro, 2019, p. 4).
Esse acúmulo histórico se projeta em tempos atuais, dificultando o avanço de políticas progressistas, fortalecendo discursos antidemocráticos e reatualizando um conservadorismo social e político resistente à transformação.
2.3. AS VOZES DA CONTESTAÇÃO: RESISTÊNCIA E LUTA PELA REDEMOCRATIZAÇÃO
O golpe militar de 1964 resultou de alianças conservadoras que depuseram João Goulart, sendo classificado por historiadores como golpe ou contragolpe (Alves, 2014; Joffily, 2018). As forças convergentes incluíram setores militares anticomunistas, empresariado nacional e internacional unidos através do IPES, Igreja Católica conservadora, classe média ameaçada pela mobilização popular, Estados Unidos via CIA no contexto da Guerra Fria, e partidos conservadores (Codato, 2004; Alves, 2014; Chiavenato, 2012; Da Silva Santos; Da Costa, 2019; Sanfelice, 1985).
A grande imprensa legitimou o golpe propagando o "fantasma do comunismo" (Da Silva Santos; Da Costa, 2019). A resistência assumiu múltiplas formas: Campanha da Legalidade de Brizola, mobilização estudantil via UNE, novo sindicalismo do ABC liderado por Lula, Comunidades Eclesiais de Base, luta armada (ALN, PCdoB), e resistência cultural através da Nova Objetividade Brasileira (Chiavenato, 2012; Sanfelice, 1985; Secco, 2011; Freitas, 2004; Alves, 2014; Joffily, 2018). A redemocratização resultou da articulação entre crise econômica, pressões internacionais e mobilização social, culminando nas Diretas Já e construção da memória através da Comissão Nacional da Verdade (Joffily, 2018; Wasserman, 2006).
Como sintetiza Chiavenato em contundente avaliação:
Em 31 de março de 1964, não houve uma revolução no Brasil. Quando muito, um ‘cisco’ na história. Um golpe civil e militar para que nada mudasse. No entanto, esse ‘cisco’, liderado por anões políticos, farsantes e aproveitadores, machucou fundo a alma nacional. Feriu de morte milhares de homens. Inundou o país de sofrimento (Chiavenato, 2012, p. 25).
- CONCLUSÃO
O golpe de 1964 não foi revolução, foi ruptura calculada para preservar privilégios. Vinte e um anos de autoritarismo militarizaram Estado e sociedade, concentraram renda e reprimiram liberdades. Mas a resistência persistiu através de estudantes, operários, artistas e comunidades. Essa contestação multiforme desgastou o regime e preparou a redemocratização. Os ecos autoritários ainda reverberam: conservadorismo institucional, práticas repressivas, tolerância à violência estatal. Compreender 1964 é exercício fundamental para reconhecer e resistir a novos autoritarismos. A memória é projeto de uma democracia mais resistente.
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