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As dificuldades no processo de aquisição da leitura: um olhar sobre a prática docente

Valquíria Mariano Tavares Barroso

 

DOI: 10.5281/zenodo.17456380

 

 

RESUMO

O presente artigo discute as principais dificuldades encontradas pelos alunos durante o processo de aquisição da leitura, analisando o papel do professor como mediador e facilitador do desenvolvimento das habilidades leitoras. A leitura é uma competência essencial para a formação integral do indivíduo, pois permite a construção do pensamento crítico, a interpretação de mundo e o exercício da cidadania. Entretanto, diversos fatores — cognitivos, sociais, afetivos e pedagógicos — interferem nesse processo, tornando a alfabetização e o letramento desafios permanentes no contexto escolar brasileiro. Fundamentado em autores como Ferreiro, Teberosky, Vygotsky, Solé, Magda Soares e Freire, o estudo propõe uma reflexão teórica sobre as causas das dificuldades na aprendizagem da leitura e sobre as estratégias pedagógicas necessárias para superá-las. O texto apresenta uma abordagem qualitativa e reflexiva, baseada na análise de referenciais teóricos e nas experiências docentes, destacando a importância da intervenção pedagógica, da formação continuada e da leitura como prática social.

 

Palavras-chave: Leitura. Alfabetização. Dificuldades. Mediação docente. Letramento.

 

 

INTRODUÇÃO

 

A leitura é uma das competências mais importantes na formação humana, pois permite compreender o mundo e construir significados sobre ele. No cotidiano escolar, é comum encontrar alunos que, mesmo após anos de escolarização, ainda enfrentam dificuldades para ler com fluência e interpretar textos. Essa realidade, vivenciada por muitos professores, desperta inquietações e o desejo de compreender as causas dessas limitações.

Durante a prática docente, observa-se que o processo de aprendizagem da leitura é marcado por avanços e retrocessos, exigindo do educador sensibilidade, paciência e estratégias diferenciadas. Ensinar a ler vai além de apresentar o código escrito; implica favorecer a construção de sentido e o prazer pelo texto.

Diante desse contexto, este artigo tem como objetivo discutir as principais dificuldades encontradas pelos alunos no processo de aquisição da leitura, analisando o papel do professor como mediador. O estudo adota uma abordagem teórico-reflexiva, fundamentada em autores como Ferreiro, Teberosky, Vygotsky, Magda Soares, Solé e Freire, buscando compreender como as práticas pedagógicas podem contribuir para a superação dessas barreiras.

 

 

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

 

 

O que é leitura e como se adquire

 

O conceito de leitura vai muito além da simples decodificação de símbolos gráficos. Ler é um ato de construção de sentido, de diálogo entre o leitor e o texto, mediado por suas experiências prévias, conhecimentos linguísticos e contexto cultural. Como afirma Solé (1998), a leitura é um processo ativo de formulação de hipóteses e verificação de significados, em que o leitor desempenha papel central.

Ferreiro e Teberosky (1985) revolucionaram a compreensão da alfabetização ao demonstrar que a criança não é um ser passivo no processo de aprendizagem da escrita e da leitura, mas um sujeito ativo, que formula hipóteses sobre o funcionamento da linguagem escrita. Assim, a aquisição da leitura é um processo construtivo, gradual e dinâmico, que depende de estímulo, interação e reflexão sobre o sistema da língua.

Do ponto de vista cognitivo, a leitura envolve habilidades de percepção visual, memória, atenção e compreensão semântica. Contudo, tais aspectos não são suficientes por si só. Vygotsky (1998) destaca que o aprendizado é um fenômeno social e que a leitura se desenvolve de forma mais eficaz quando mediada por um outro mais experiente — o professor — que orienta o aluno dentro da sua zona de desenvolvimento proximal.

Dessa forma, a leitura é simultaneamente um ato individual e coletivo. É individual porque depende da internalização e da interpretação pessoal; e é coletiva porque nasce da interação com o meio, com os textos e com os outros sujeitos que compartilham o mesmo espaço cultural.

 

 

O papel da linguagem e da interação social

 

A leitura, como prática de linguagem, está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento da consciência e da capacidade de comunicação. Segundo Vygotsky (1998), o domínio da linguagem escrita permite ao indivíduo reorganizar o pensamento e expandir suas formas de raciocínio, pois o contato com o texto escrito proporciona novas estruturas cognitivas e simbólicas.

Nesse sentido, o processo de aquisição da leitura precisa ser compreendido dentro de uma perspectiva sociointeracionista. O ato de ler emerge do contato com a linguagem viva, com o discurso do outro, com o contexto cultural em que o sujeito está inserido. O professor, nesse processo, atua como mediador que traduz o conhecimento social em experiências significativas de aprendizagem.

Freire (1989) reforça essa visão ao afirmar que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Isso significa que o leitor não é apenas decodificador de signos, mas intérprete de realidades. A criança que compreende o sentido social e comunicativo da leitura desenvolve mais facilmente o gosto por ler e a consciência de que o texto é uma forma de compreender e transformar o mundo.

 

 

Leitura, alfabetização e letramento

 

Durante muito tempo, o ensino da leitura foi reduzido à ideia de alfabetização mecânica — o simples ato de decodificar letras e sons. Entretanto, as discussões contemporâneas trouxeram a noção de letramento como ampliação desse conceito. Magda Soares (2004) define letramento como o uso social da leitura e da escrita, ou seja, a capacidade de utilizar essas habilidades nas práticas cotidianas e sociais.

Enquanto a alfabetização preocupa-se em ensinar o código, o letramento visa desenvolver a compreensão crítica e funcional da leitura. Uma criança alfabetizada pode ler palavras, mas apenas o sujeito letrado é capaz de compreender o texto em sua totalidade, interpretando-o e atribuindo-lhe sentido.

Portanto, o processo de aquisição da leitura deve articular alfabetização e letramento, pois ambos são complementares e interdependentes. Trabalhar leitura significa, nesse contexto, oferecer situações reais de uso da linguagem escrita, promovendo o diálogo com diferentes gêneros textuais, contextos comunicativos e suportes — livros, cartazes, revistas, histórias, tirinhas e textos digitais.

 

 

Políticas públicas e desafios atuais

 

Apesar das iniciativas nacionais de incentivo à leitura e alfabetização, como o PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa) e o programa Tempo de Aprender, ainda há grandes desafios para garantir a todos os alunos o domínio pleno da leitura. Dados do SAEB (2023) revelam que cerca de 54% dos estudantes brasileiros do 5º ano não atingem o nível adequado de proficiência leitora.

Esses resultados apontam para a necessidade de se repensar as práticas pedagógicas e de fortalecer a formação continuada dos professores. É fundamental que a leitura seja trabalhada de maneira contínua em todas as áreas do conhecimento, e não apenas como responsabilidade do professor alfabetizador.

Morin (2000) lembra que a educação precisa preparar o aluno para compreender a complexidade do mundo, o que inclui desenvolver a capacidade de interpretar criticamente os discursos e as informações que o cercam. Assim, promover a leitura é também formar cidadãos capazes de pensar, questionar e agir de maneira consciente em sociedade.

 

 

FATORES QUE INTERFEREM NA AQUISIÇÃO DA LEITURA

 

A aquisição da leitura é um processo multifatorial que envolve dimensões cognitivas, afetivas, sociais e pedagógicas. Compreender essas variáveis é essencial para que o professor possa intervir de forma adequada e promover avanços consistentes no desenvolvimento leitor de seus alunos.

Na realidade escolar, observa-se que essas dificuldades aparecem de forma diversa entre os alunos: enquanto alguns apresentam barreiras cognitivas, outros enfrentam limitações ligadas ao contexto social ou à falta de estímulo à leitura no ambiente familiar.

 

 

Fatores cognitivos e neurológicos

 

Do ponto de vista cognitivo, a leitura requer o domínio de habilidades perceptuais e metalinguísticas, como a consciência fonológica, a memória de trabalho e a atenção seletiva. A ausência ou fragilidade em uma dessas áreas pode comprometer o progresso da criança.

Segundo Capovilla e Capovilla (2007), a consciência fonológica — isto é, a capacidade de identificar e manipular os sons das palavras — é uma das bases para o aprendizado da leitura. Crianças que não desenvolvem essa habilidade encontram maior dificuldade em compreender a relação entre fonemas e grafemas.

Além disso, há fatores de ordem neurológica que interferem nesse processo, como a dislexia, que se caracteriza por dificuldades persistentes no reconhecimento das palavras, na fluência e na decodificação. Embora não impeça o aprendizado, a dislexia exige intervenções específicas, pautadas em práticas de leitura graduadas e sistemáticas. Assim, o diagnóstico precoce e a atuação pedagógica intencional tornam- se fundamentais.

 

 

Fatores afetivos e sociais

 

As emoções e o ambiente emocional exercem papel decisivo no processo de leitura. Um aluno inseguro, ansioso ou desmotivado tende a evitar o contato com o texto, reduzindo suas oportunidades de aprendizagem.

Vygotsky (1998) defende que a afetividade e a cognição são indissociáveis, e que o professor precisa considerar o aspecto emocional no ato educativo. O acolhimento, o incentivo e a valorização das conquistas individuais fortalecem o vínculo entre o aluno e o conhecimento.

Além disso, o meio social influencia diretamente a formação leitora. Crianças inseridas em ambientes ricos em práticas de leitura — onde há livros, histórias e adultos leitores — têm mais facilidade em desenvolver o gosto pela leitura e compreender sua função social. Já em contextos de vulnerabilidade social, a ausência de estímulos culturais e linguísticos dificulta esse processo, exigindo da escola um papel compensatório.

 

 

Fatores pedagógicos

 

As práticas pedagógicas adotadas na sala de aula podem tanto favorecer quanto limitar o aprendizado da leitura. Metodologias centradas apenas na decodificação mecânica de palavras, sem conexão com o sentido e com o contexto do aluno, resultam em uma aprendizagem fragmentada.

Solé (1998) propõe que a leitura deve ser ensinada como um processo estratégico, no qual o aluno utiliza recursos cognitivos e metacognitivos para compreender, inferir e refletir sobre o texto. Assim, cabe ao professor oferecer atividades que envolvam a compreensão global, a antecipação de sentidos, o levantamento de hipóteses e o diálogo com o texto.

A escolha de textos variados, o uso de metodologias ativas e o incentivo à leitura prazerosa — como contação de histórias, dramatizações e projetos literários — são caminhos eficazes para despertar o interesse e consolidar a competência leitora.

 

 

Fatores familiares e socioculturais

 

O ambiente familiar é um espaço decisivo para a consolidação da leitura. Magda Soares (2004) ressalta que o letramento começa antes mesmo da escolarização formal, quando a criança observa os adultos lendo, escreve seus primeiros rabiscos e ouve histórias.

A ausência de práticas leitoras no lar, a falta de diálogo e o acesso limitado a materiais escritos reduzem as oportunidades de interação com a linguagem. Em contrapartida, quando a família valoriza a leitura, o aluno tende a apresentar maior fluência, compreensão e gosto pelo ato de ler.

Por isso, a parceria entre escola e família é indispensável. Na prática em sala de aula percebe-se que quando a escola se aproxima das famílias, promovendo momentos de leitura compartilhada e rodas de conversa, o interesse dos alunos pela leitura tende a aumentar significativamente.

 

 

O PAPEL DO PROFESSOR E AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

 

 

O professor como mediador da aprendizagem

 

O professor é mediador entre o conhecimento e o aluno. Seu papel vai além de ensinar o código escrito; ele precisa criar condições para que o estudante descubra o prazer e a funcionalidade da leitura.

Vygotsky (1998) explica que a aprendizagem ocorre primeiro no plano social, por meio da interação com o outro, e depois é internalizada. Dessa forma, o professor precisa planejar experiências de leitura que favoreçam a troca de sentidos, o diálogo e a construção coletiva do saber.

A mediação eficaz exige sensibilidade, escuta e planejamento intencional. O docente precisa identificar os níveis de desenvolvimento dos alunos e propor desafios graduais, respeitando o ritmo individual, mas promovendo o avanço de todos.

 

 

Estratégias e intervenções pedagógicas eficazes

 

Entre as práticas eficazes para o ensino da leitura estão a leitura compartilhada, a leitura guiada, o reconto oral, o uso de jogos fonológicos e o trabalho com diferentes gêneros textuais. Essas estratégias proporcionam contato frequente com a língua escrita em contextos significativos.

Ferreiro e Teberosky (1985) enfatizam que a criança aprende a ler refletindo sobre o sistema de escrita. Assim, atividades que estimulem a comparação entre palavras, a análise de rimas e a reconstrução de textos contribuem para a compreensão do princípio alfabético.

Além disso, o uso de tecnologias digitais pode potencializar o aprendizado. Plataformas de leitura online, livros digitais e aplicativos interativos podem tornar a prática mais dinâmica e motivadora, desde que utilizados com intencionalidade pedagógica.

 

 

Avaliação diagnóstica e acompanhamento contínuo

 

A avaliação é um componente essencial do processo de ensino-aprendizagem. Mais do que medir resultados, ela deve permitir compreender as necessidades de cada aluno e orientar o trabalho docente.

Segundo Luckesi (2011), avaliar é um ato pedagógico e ético, que busca promover o crescimento e não a punição. No ensino da leitura, a avaliação diagnóstica deve identificar o nível em que o aluno se encontra — pré-silábico, silábico, silábico- alfabético ou alfabético — e indicar caminhos de intervenção.

O acompanhamento contínuo, aliado ao registro de observações e portfólios de leitura, oferece uma visão global da evolução do aluno e subsidia o planejamento de novas ações.

 

 

A LEITURA COMO PRÁTICA DE INCLUSÃO E EQUIDADE

 

A leitura também é uma ferramenta de inclusão, pois possibilita o acesso ao conhecimento e à participação social. No contexto da educação inclusiva, é essencial que o professor adapte suas práticas para atender às especificidades dos alunos com deficiência, transtornos de aprendizagem ou dificuldades temporárias.

Segundo o Ministério da Educação (BRASIL, 2008), a inclusão escolar exige uma pedagogia flexível e acolhedora, baseada no respeito às diferenças e na garantia de oportunidades iguais. A leitura, nesse cenário, deve ser apresentada de forma acessível, utilizando recursos visuais, audiovisuais, livros ampliados e tecnologias assistivas.

Além disso, a diversidade textual — contos, poemas, músicas, histórias em quadrinhos e textos multimodais — amplia as possibilidades de compreensão e expressão, fortalecendo a autoestima e a autonomia do aluno.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A leitura é mais do que uma habilidade escolar: é uma prática de liberdade, de pensamento e de participação no mundo. As dificuldades no processo de aquisição da leitura refletem não apenas falhas pedagógicas, mas também desigualdades sociais e culturais que atravessam o sistema educacional brasileiro.

O professor, como mediador e agente transformador, desempenha papel crucial na superação dessas dificuldades. A sua prática deve ser pautada na escuta atenta, na valorização do aluno e na busca constante por estratégias inovadoras e significativas.

Conclui-se que o desenvolvimento da leitura requer um trabalho coletivo entre escola, professores, gestores e família, sustentado por políticas públicas eficazes e pela valorização da formação docente.

Ao longo da vivência docente, aprendi que ensinar a ler é muito mais do que decodificar palavras, que cada aluno constrói seu próprio caminho na leitura, e que o olhar atento e afetivo do professor faz toda diferença nesse processo.

Como lembra Freire (1989), “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, e é por meio dela que o ser humano se reconhece como sujeito histórico e social. Assim, promover o domínio da leitura é garantir não apenas o acesso ao conhecimento, mas também o direito à emancipação e à cidadania.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018.

 

BRASIL.       Política        Nacional      de      Educação    Especial      na          Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEESP, 2008.

 

CAPOVILLA, Fernando C.; CAPOVILLA, Alessandra G. S. Alfabetização: método fônico. São Paulo: Memnon, 2007.

 

FERREIRO, Emilia; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1985.

 

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1989.

 

LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e proposições. 22. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

 

MAGDA SOARES. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2004.

 

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000.

 

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Artmed, 1998.

 

VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1998.