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Corpos que cantam e olhares que dançam: um estudo sobre Musicoterapia, Neuropsicologia e Psicanálise no Autismo

Gisele Sant'Ana Lemos

 

Agradeço à Profª Dra. Martha Aracy Lovisaro do Nascimento pela orientação criteriosa, pela escuta atenta e pelas contribuições teóricas e metodológicas que enriqueceram o desenvolvimento desta pesquisa.

 

DOI: 10.5281/zenodo.16887632

 

 

RESUMO

Este artigo investiga os impactos da musicoterapia no desenvolvimento cognitivo, emocional e social de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), com base nos referenciais da neuropsicologia e da escuta psicanalítica. Participaram do estudo 30 crianças diagnosticadas com TEA, acompanhadas em sessões de musicoterapia que integraram instrumentos musicais, improvisações, cantigas, fantoches, dedoches e estímulos sensoriais. O objetivo foi analisar de que forma a música, enquanto linguagem simbólica e afetiva, pode favorecer a comunicação, a expressão emocional, a regulação sensorial e a interação social. Os resultados indicaram: 17 crianças realizaram improvisações musicais; 5 tocaram espontaneamente a melodia “Cai Cai Balão”; 5 verbalizaram ou imitaram sons; 7 engajaram-se em dança espontânea; 7 cantaram no microfone com entusiasmo; 10 utilizaram fantoches em atividades musicais; e 10 solicitaram ativamente instrumentos musicais ou brinquedos com estímulos visuais. A análise foi fundamentada nos aportes de Sacks, Nordoff, Robbins, Alvin, Winnicott e Mannoni. Conclui-se que a musicoterapia, aliada à escuta psicanalítica e aos fundamentos da neuropsicologia, potencializa não apenas o estímulo de funções cognitivas e sensoriais, mas também o florescimento subjetivo, promovendo a criação, o vínculo e a expressão singular de cada criança.

 

Palavras-chave: Transtorno do Espectro Autista. Musicoterapia. Psicanálise. Neuropsicologia. Expressão emocional.

 

 

Introdução

 

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é caracterizado por alterações na comunicação, na interação social e nos padrões de comportamento, frequentemente associado a dificuldades sensoriais e cognitivas. Tradicionalmente, o tratamento do TEA tem sido centrado em abordagens de base comportamental, como a Análise do Comportamento Aplicada (ABA), amplamente difundida como protocolo padrão. Contudo, observa-se uma tendência reducionista ao considerar a ABA como a única abordagem válida, desconsiderando outras estratégias terapêuticas que reconhecem o sujeito autista em sua complexidade psíquica, afetiva e relacional.

Nesse contexto, a articulação entre neuropsicologia, psicanálise e musicoterapia apresenta-se como uma via fecunda para ampliar o olhar sobre o cuidado e o desenvolvimento de crianças com TEA. Os estudos contemporâneos em neuropsicologia contribuem para uma compreensão mais refinada dos processos cognitivos e emocionais, fornecendo subsídios relevantes para o acompanhamento das condições do neurodesenvolvimento. Paralelamente, a psicanálise — especialmente em suas vertentes voltadas à infância — oferece uma escuta sensível aos modos não verbais de comunicação e às expressões simbólicas da subjetividade.

Donald Winnicott destaca o brincar como experiência transicional fundamental à constituição do self e à saúde psíquica. A musicoterapia, por sua vez, propicia a exploração dos instrumentos, dos sons e de novas descobertas sensoriais, funcionando como uma forma de brincar que fortalece o desenvolvimento emocional. A importância do brincar para a saúde mental infantil, enfatizada por Winnicott (1975), reforça o papel da musicoterapia como espaço seguro e criativo para crianças com TEA. Segundo Winnicott, o brincar possibilita a integração do self e a construção de vínculos afetivos essenciais para a saúde psíquica. Assim, ao favorecer o brincar musical e a expressão espontânea, a musicoterapia atua não só como intervenção clínica, mas também como um ambiente promotor de saúde mental, ampliando as possibilidades de comunicação, simbolização e autonomia emocional. Essa perspectiva amplia o alcance terapêutico, reconhecendo que o cuidado com crianças autistas deve ir além dos sintomas e incluir a promoção da qualidade de vida e do bem-estar emocional.

Já Maud Mannoni, ao trabalhar com crianças consideradas “deficientes”, propõe uma escuta que valorize o desejo e os modos singulares de enunciação do sujeito, mesmo quando esses modos escapam às normas convencionais de linguagem e comportamento. Essa abordagem reforça a importância de reconhecer a criança com TEA como sujeito ativo, cuja expressão — mesmo não verbal ou atípica — deve ser acolhida e compreendida, e não descartada ou patologizada. Na musicoterapia, essa escuta sensível manifesta-se na atenção às manifestações espontâneas e criativas da criança, respeitando sua singularidade e possibilitando formas legítimas de comunicação e vínculo afetivo.

No campo da psicanálise do desenvolvimento, Daniel Stern (1995) destaca a importância da comunicação afetiva precoce e dos “momentos de encontro” não verbais entre o adulto e a criança, ressaltando como essas interações são fundamentais para a construção do sentido do self e para a experiência de estar em relação. Esses momentos, que ocorrem por meio do olhar, da expressão facial, do tom de voz e do toque, constituem a base para o estabelecimento de vínculos afetivos seguros e para o desenvolvimento da subjetividade. Essa perspectiva reforça a necessidade de abordagens terapêuticas que valorizem a escuta sensível e a expressão não verbal, como ocorre na musicoterapia, possibilitando que a criança com TEA seja reconhecida em sua singularidade e potencialidade relacional.

No campo das práticas expressivas, a musicoterapia surge como instrumento privilegiado para favorecer a expressão e a comunicação em crianças autistas, respeitando suas formas próprias de se relacionar com o mundo. Juliette Alvin, precursora da musicoterapia clínica, enfatizou o papel da música como meio de comunicação simbólica e emocional. Seu trabalho influenciou profundamente Paul Nordoff e Clive Robbins, que desenvolveram uma abordagem centrada na improvisação e na musicalidade inata da criança, incluindo aquelas com autismo severo. A música, nesse contexto, atua como linguagem universal capaz de criar vínculos, favorecer a afetividade e estimular a criatividade.

As contribuições de Oliver Sacks, por sua vez, ilustram o impacto transformador da música na reorganização de funções cognitivas e afetivas em indivíduos com diferentes condições neurológicas. Seus relatos clínicos apontam para a potência terapêutica da música como mediadora entre o sujeito e o mundo, promovendo reconexões afetivas e sensoriais mesmo em casos de grande comprometimento.

Após a formação no curso de Docência e Neuropsicologia, resolvi integrar a prática da musicoterapia ao trabalho com crianças diagnosticadas com TEA, atuando em contexto clínico-musicoterapêutico. Apesar de não ser responsável pelos laudos diagnósticos, durante os atendimentos, percebi que alguns pareceres não correspondiam plenamente à realidade subjetiva e relacional das crianças. Muitas que foram classificadas como TEA nível III, por exemplo, mantinham contato visual, falavam (embora com timidez), interagiam com o ambiente, pediam o que queriam e, mesmo em momentos de desregulação, buscavam apoio oferecendo ou pedindo a mão — demonstrando vínculos e intencionalidade afetiva.

Essas observações me levaram a refletir sobre a importância de abordagens terapêuticas mais sensíveis à singularidade de cada criança, indo além da rigidez classificatória. A arte, nesse contexto, sobretudo por meio da música, mostrou- se um recurso terapêutico potente para acessar o mundo interno das crianças, ativando memórias sensoriais, emocionais e familiares, e promovendo possibilidades de expressão simbólica, comunicação e vínculo.

A musicoterapia, enquanto prática clínica interdisciplinar, favorece a escuta e a observação de comportamentos espontâneos em contextos lúdicos e afetivos. Unindo os referenciais da neuropsicologia, da psicanálise e da musicoterapia, este estudo busca investigar como a experiência musical pode contribuir para o desenvolvimento emocional, cognitivo e relacional de crianças com TEA. A proposta ancora-se em uma abordagem sensível ao brincar, à improvisação, à linguagem não verbal e à subjetividade expressa por meio da música — compreendida aqui não apenas como estímulo, mas como linguagem que mobiliza afetos, ativa redes neurais e amplia as possibilidades de comunicação.

A pesquisa-ação foi o método escolhido por permitir a integração entre teoria e prática, possibilitando adaptações contínuas conforme as respostas das crianças durante as sessões. Essa metodologia também favorece uma postura investigativa e ética por parte do terapeuta, que se coloca em escuta ativa e sensível ao que emerge no encontro clínico-musical.

Com base nesse referencial, este artigo apresenta os resultados de uma intervenção musicoterapêutica realizada com 30 crianças com TEA em ambiente terapêutico. Foram observadas manifestações expressivas, espontâneas e criativas em resposta a diferentes procedimentos musicais, como improvisações, vocalizações, jogos interativos, dança e exploração de instrumentos. Os dados sugerem que tais manifestações — mesmo quando repetitivas ou consideradas atípicas — revelam afetos, desejos e formas legítimas de comunicação, apontando para a importância de uma clínica interdisciplinar que valorize a arte, o brincar e a música como caminhos de cuidado e expressão subjetiva na saúde mental infantil.

 

 

Metodologia

 

Este estudo adota a abordagem de pesquisa-ação, caracterizada pela participação ativa do pesquisador no contexto investigado, promovendo intervenções práticas simultaneamente à análise crítica dos fenômenos observados. De natureza qualitativa, a pesquisa teve como objetivo compreender os impactos da musicoterapia sobre o desenvolvimento cognitivo, emocional e social de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), à luz dos referenciais da neuropsicologia e da psicanálise.

 

 

Participantes

 

Participaram do estudo 30 crianças diagnosticadas com TEA, com idades entre 3 e 15 anos, acompanhadas em uma clínica multidisciplinar. O critério de inclusão foi a confirmação de diagnóstico de TEA e disponibilidade para participação regular nas sessões. A participação foi autorizada por meio de termo de consentimento livre e esclarecido assinado pelos responsáveis legais.

 

 

Ambiente e Duração

 

As sessões de musicoterapia foram realizadas em um ambiente terapêutico estruturado, equipado com recursos apropriados à prática clínica, tais como instrumentos musicais diversos (teclado, violão, guitarras, tambores, pandeiros, xilofones, chocalhos, triângulo, djembe, xequerê, flauta e apitos), além de materiais lúdicos complementares, como fantoches, dedoches e brinquedos com estímulos visuais (luzes) e sonoros.

Cada participante foi submetido a uma sessão semanal, ao longo de um período de 8 semanas (equivalente a 2 meses), totalizando 360 horas de atendimento avaliadas. As intervenções foram conduzidas por uma musicoterapeuta com formação especializada, em articulação interdisciplinar com outros profissionais da equipe clínica, incluindo fonoaudiólogos, psicólogos e terapeutas ocupacionais.

 

 

Procedimentos

 

A proposta musicoterapêutica foi fundamentada em abordagens que valorizam a expressão subjetiva, a improvisação, a escuta sensível e o respeito à singularidade de cada criança. As sessões foram planejadas de forma flexível, permitindo que as crianças se expressassem livremente por meio da música, do corpo, da imaginação e da experimentação espontânea.

Durante os atendimentos, foram utilizados os seguintes procedimentos clínico-musicais:

Improvisação musical livre: a criança teve acesso a instrumentos variados para explorar sons de maneira espontânea, sem direcionamentos rígidos, favorecendo a autoexpressão sonora e emocional;

Imitação de sons e vocalizações: o(a) terapeuta reproduzia sons emitidos pela criança (vocais, corporais ou instrumentais), promovendo jogo sonoro, comunicação não verbal e construção de vínculo;

Reprodução e criação de padrões rítmicos/melódicos: foram apresentados estímulos musicais com tambores, xilofones, clavas e outros instrumentos, incentivando a escuta ativa, coordenação motora e participação relacional;

Canções estruturadas: músicas conhecidas ou adaptadas foram utilizadas para organizar a sessão, promover engajamento e favorecer a expressão vocal;

Jogos musicais interativos: brincadeiras musicais com regras simples foram aplicadas para estimular turnos, imitação, atenção conjunta e interação social;

Movimento com música: as crianças eram incentivadas a dançar, balançar, pular ou simplesmente movimentar-se de forma livre em resposta à música, promovendo integração sensório-motora e expressão afetiva;

Experimentação livre de instrumentos: instrumentos e brinquedos musicais permaneceram disponíveis para uso espontâneo, respeitando o tempo, os interesses e a curiosidade de cada criança;

Audições musicais guiadas: especialmente com crianças maiores, foram utilizadas músicas eruditas e sons da natureza (água, vento, canto de pássaros) para favorecer relaxamento, atenção e autorregulação emocional.

Além dessas práticas, observou-se que crianças mais velhas demonstravam autonomia na exploração musical, utilizando celulares ou tablets para pesquisar músicas, reproduzir melodias e organizar pequenos estudos por conta própria. Algumas crianças traziam sugestões musicais para as sessões, evidenciando envolvimento ativo e desejo de participação.

Durante as audições de músicas calmas ou cantigas de roda, foram oferecidos recursos expressivos como massinha de modelar, bolhas de sabão e desenho livre, possibilitando que as crianças criassem enquanto ouviam música. Nesses momentos, a musicoterapeuta também cantava ao vivo, criando um ambiente afetivo e sensível à escuta.

Todas as sessões foram registradas por meio de observações clínicas sistematizadas, com foco nas respostas expressivas das crianças, comportamentos comunicativos (verbais ou não verbais), formas de interação, padrões repetitivos, iniciativas musicais espontâneas, sinais de relaxamento ou excitação, e manifestações de prazer, desconforto ou curiosidade. Os dados foram analisados qualitativamente, buscando compreender como a experiência musical contribuiu para o desenvolvimento relacional, emocional, expressivo e subjetivo de cada criança.

 

 

Análise dos Dados

 

A análise seguiu uma lógica interpretativa, fundamentada nos referenciais teóricos de Donald Winnicott, Maud Mannoni, Juliette Alvin, Clive Robbins, Paul Nordoff e Oliver Sacks. As manifestações observadas nas crianças foram compreendidas como expressões simbólicas e subjetivas, revelando modos singulares de comunicação, vínculo afetivo e construção de sentido. O método de pesquisa-ação, conforme Thiollent (2011), foi adotado como base metodológica, permitindo a constante integração entre teoria e prática durante as sessões de musicoterapia com crianças diagnosticadas com TEA.

Esse método caracterizou-se pelo ciclo contínuo de planejamento, ação, observação e reflexão, possibilitando a adaptação das estratégias terapêuticas em tempo real, de acordo com as respostas e necessidades específicas de cada criança. A partir dessa dinâmica, foi possível articular os fundamentos da neuropsicologia — que subsidiam a compreensão dos processos cerebrais e cognitivos implicados nas respostas musicais — com a observação clínica sensível à subjetividade e aos aspectos simbólicos destacados pela psicanálise.

Dessa forma, a intervenção musicoterapêutica não se configurou como um protocolo rígido, mas como um espaço vivo e flexível, que respeitou a singularidade dos sujeitos e promoveu o desenvolvimento integral por meio da música.

 

 

Resultados

 

Durante a aplicação das sessões de musicoterapia com 30 crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), foram observadas respostas significativas em múltiplas dimensões — cognitivas, emocionais, expressivas e sociais.

A análise qualitativa revelou manifestações expressivas variadas, evidenciando a importância de uma abordagem integrada entre neuropsicologia, psicanálise e musicoterapia para compreender e promover o desenvolvimento subjetivo e relacional desses sujeitos. Identificaram-se diferentes formas de envolvimento das crianças com os estímulos musicais, revelando aspectos importantes sobre sua capacidade de comunicação, expressão de sentimentos e construção de vínculos afetivos.

Os resultados foram categorizados da seguinte forma:

17 crianças (56,7%) realizaram improvisações musicais, demonstrando liberdade criativa ao explorar instrumentos e sons, muitas vezes estabelecendo diálogo sonoro com o terapeuta. Conforme a abordagem de Nordoff e Robbins, a improvisação é uma via potente de expressão emocional e contato intersubjetivo, permitindo que a criança se coloque no mundo através do som.

5 crianças (16,7%) tocaram teclado reproduzindo espontaneamente a melodia de "Cai Cai Balão" de ouvido, evidenciando percepção auditiva refinada e memória musical. Esse comportamento ilustra, como discutido por Oliver Sacks, que a música pode acessar áreas preservadas do cérebro, mesmo quando outras formas de linguagem estão comprometidas.

5 crianças (16,7%) verbalizaram ou imitaram sons, como vozes de animais ou notas musicais (dó, ré, mi, fá), ao mesmo tempo em que tocavam teclado. Essas produções espontâneas apontam para a função estruturante da música na organização simbólica e no uso da linguagem, conforme discutido por Juliette Alvin.

7 crianças (23,3%) engajaram-se em movimentação corporal, dançando de forma espontânea em resposta à música. A dança, nesse contexto, apresenta- se como forma de regulação emocional e apropriação do corpo em movimento, algo que Winnicott considera essencial para a vivência do self e a integração psíquica.

7 crianças (23,3%) cantaram no microfone com entusiasmo, demonstrando alegria e prazer ao se expressar musicalmente diante do outro. Essa manifestação de afeto e desejo de comunicação direta é significativa no contexto do TEA, no qual há frequentemente retraimento social.

10 crianças (33,3%) utilizaram dedoches e fantoches, combinados com audição de músicas e histórias, favorecendo escuta, atenção conjunta e imaginação simbólica. Esses instrumentos funcionaram como mediadores lúdicos, criando um “espaço transicional” (Winnicott), onde a criança pode brincar com segurança e criatividade.

10 crianças (33,3%) solicitaram ativamente instrumentos musicais e brinquedos com estímulos luminosos, indicando desejo de escolha e protagonismo na sessão. O ato de pedir, escolher e brincar revela o acesso a um espaço interno de desejo — conceito fundamental na psicanálise, especialmente na leitura de Maud Mannoni, que valoriza a escuta do sujeito por trás do sintoma.

Embora diversas, essas manifestações revelam um traço comum: a música funciona como ponte entre o mundo interno da criança e o mundo externo, promovendo abertura ao outro, expressão de afetos e envolvimento sensorial, mesmo quando a linguagem verbal não está plenamente desenvolvida.

Observou-se que a repetição de determinadas brincadeiras ou canções — muitas vezes vistas como comportamentos estereotipados — não configura mero automatismo, mas sim uma forma de organizar o mundo interno e reatualizar experiências de prazer e segurança. Como destaca Winnicott, a repetição no brincar pode ser um modo de consolidar sentido e encontrar continuidade existencial.

A pesquisa-ação possibilitou adaptar os procedimentos conforme os movimentos das crianças, favorecendo um ambiente flexível, criativo e acolhedor. A intervenção não apenas observou os efeitos da música, mas criou um espaço simbólico onde o sujeito pôde emergir, mesmo que de modo fragmentado ou não convencional.

Sob a perspectiva da neuropsicologia, mesmo crianças consideradas mais “fechadas” ou com maiores dificuldades de interação verbal apresentaram respostas significativas aos estímulos musicais. A música, atuando como estímulo sensorial e emocional, promove ativações cerebrais que vão além do processamento cognitivo tradicional, atingindo áreas ligadas à memória sensorial e afetiva. Muitas vezes parecia que a criança não prestava atenção durante o canto ou improvisações, porém posteriormente manifestava repetição espontânea de palavras ou frases presentes nas músicas, como “roda do carro” ou “dinossauro”, indicando um processo de internalização e ressignificação dos estímulos musicais.

Do ponto de vista psicanalítico, as manifestações repetitivas e fixações musicais foram compreendidas como formas simbólicas de expressão, refletindo modos próprios de comunicação e elaboração subjetiva. Inspirados nos conceitos de Winnicott e Mannoni, o musicoterapeuta privilegiou o espaço de brincadeira e improvisação, criando um ambiente acolhedor que possibilitou o surgimento de conteúdos emocionais e desejos muitas vezes inacessíveis pela linguagem verbal convencional. Assim, a arte musical funcionou como via de acesso ao mundo interno das crianças, respeitando sua singularidade e ampliando possibilidades de vínculo e comunicação.

O musicoterapeuta, com escuta sensível e flexibilidade, explorou as diferentes manifestações musicais e corporais, reconhecendo a importância do “estar com” e do “acompanhar” o ritmo e interesse de cada sujeito. A improvisação livre, a imitação de sons e o movimento com música favoreceram a expressão espontânea e a construção de sentidos, mesmo em contextos de aparente fechamento ou isolamento.

Além disso, a repetição de fragmentos musicais ou palavras cantadas não foi vista como mero comportamento estereotipado, mas como forma legítima de comunicação e processamento emocional. A musicoterapia proporcionou um espaço onde essas expressões puderam emergir, ser acolhidas e ampliadas, contribuindo para a ampliação da subjetividade e do contato afetivo.

Esses resultados indicam que, apesar das dificuldades inerentes ao TEA, a combinação entre conhecimentos neuropsicológicos, psicanalíticos e musicoterapêuticos permite um olhar mais amplo e humanizado, valorizando a singularidade e os recursos expressivos de cada criança. A música atua como canal privilegiado de ativação cerebral, expressão emocional e vínculo, sendo fundamental para o desenvolvimento integral e promoção da saúde mental desse público.

 

 

Discussão

 

Os resultados deste estudo, sob a perspectiva da neuropsicologia, reforçam a eficácia da musicoterapia como intervenção integrativa no acompanhamento clínico de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA). A música, ao atuar como linguagem simbólica e multifuncional, ativa amplas redes neurais ligadas à percepção, memória, atenção, emoção e movimento, corroborando os achados de autores como Oliver Sacks (2008), que ressaltam o potencial transformador da música na reorganização cognitiva e afetiva.

Observou-se que crianças com perfis mais severos responderam significativamente a estímulos musicais, manifestando comportamentos como repetição verbal, contato visual e exploração rítmica espontânea. Esses dados dialogam com a concepção de Nordoff e Robbins (2007), que destacam a musicalidade inata como via terapêutica para a expressão e estabelecimento de vínculo, especialmente por meio da improvisação livre. A música, nesse sentido, transcende a comunicação verbal, oferecendo uma via de regulação emocional e expressão não verbal fundamental para crianças com dificuldades de linguagem.

No âmbito da psicanálise, os conceitos de Winnicott (1971; 1975) sobre o brincar como experiência transicional ganham nova dimensão quando aplicados à musicoterapia. O ambiente musical configura-se como um espaço seguro de experimentação afetiva, onde a criança pode explorar desejos, angústias e formas singulares de existência, mesmo diante das limitações da linguagem articulada. A repetição de sons ou movimentos, frequentemente interpretada como estereotipada, é aqui compreendida como uma organização psíquica e uma forma legítima de simbolização, reforçando a visão de Mannoni (1977) que propõe uma escuta que acolha o desejo e as formas próprias de enunciação do sujeito, ainda que atípicas.

Essa escuta sensível, defendida também por Alvin (1986) e Wigram et al. (2002), é essencial para acompanhar o tempo interno da criança, respeitando suas pausas e repetições, e sustentando a relação terapêutica por meio da música. Tal postura permite o fortalecimento do vínculo afetivo e o surgimento de movimentos de simbolização e desejo, confirmando as contribuições de Stern (1995) sobre a importância dos “momentos de encontro” não verbais para a construção do self e da relação.

Os resultados encontrados criticam abordagens exclusivamente comportamentais, ao demonstrar que integrar aspectos neurofuncionais e subjetivos amplia a adesão da criança e produz efeitos terapêuticos mais profundos e duradouros. Estudos recentes em neurodesenvolvimento (Lagasse, 2017; Zwaigenbaum et al., 2021) reforçam que estímulos musicais organizados e afetivamente significativos, como os promovidos pela musicoterapia, ativam plasticidade cerebral respeitando o ritmo singular de cada sujeito.

A utilização da pesquisa-ação permitiu um olhar ético e responsivo do terapeuta, ajustando constantemente as intervenções conforme a expressão singular de cada criança, e promovendo um espaço dinâmico, afetivo e compartilhado. Dessa forma, o protagonismo infantil foi valorizado, possibilitando que a criança fosse escutada em sua forma particular de expressão — um princípio que está no cerne das abordagens humanizadas e integrativas defendidas por todos esses autores.

Além dos benefícios terapêuticos observados, é importante considerar os desafios enfrentados na implementação da musicoterapia em contextos clínicos para crianças com TEA. A heterogeneidade do espectro autista requer que as intervenções sejam altamente individualizadas, respeitando o ritmo e as necessidades específicas de cada criança. Nesse sentido, a flexibilidade do musicoterapeuta, aliada à escuta ativa e à sensibilidade clínica, é essencial para adaptar estratégias e garantir um ambiente acolhedor e estimulante (Geretsegger et al., 2014).

Outro aspecto relevante refere-se à formação interdisciplinar dos profissionais envolvidos no cuidado às crianças com TEA. A articulação entre neuropsicologia, psicanálise e musicoterapia, como demonstrado neste estudo, pode favorecer intervenções mais amplas e integradas, promovendo uma visão holística do sujeito. No entanto, na prática, a comunicação entre áreas ainda enfrenta barreiras institucionais e conceituais, que muitas vezes dificultam a construção de planos terapêuticos coesos e centrados na singularidade do paciente (Schwartzman, 2012).

A musicoterapia, portanto, não deve ser vista como um recurso isolado, mas como parte de um conjunto de estratégias complementares que envolvem família, escola e equipes multidisciplinares. Essa visão integrada é fundamental para superar estigmas associados ao diagnóstico de TEA e para garantir o direito à inclusão e ao desenvolvimento pleno das capacidades da criança (Zwaigenbaum et al., 2021). Em particular, o envolvimento familiar nas sessões e o estímulo à continuidade das práticas lúdico-musicais no ambiente doméstico podem potencializar os ganhos terapêuticos, promovendo um processo de cuidado compartilhado e sustentado.

Por fim, os avanços recentes em neurociência destacam a importância do estímulo sensorial enriquecido e afetivamente significativo para a promoção da plasticidade cerebral. Nesse sentido, a musicoterapia emerge como uma prática não apenas clínica, mas também preventiva e promotora de saúde mental, favorecendo o desenvolvimento de habilidades socioemocionais e cognitivas essenciais para a autonomia e a qualidade de vida das crianças com TEA (Lagasse, 2017; Sacks, 2008).

Assim, ao articular neuropsicologia, psicanálise e musicoterapia, este estudo confirma a música como linguagem poderosa e humanizadora, capaz de acessar o mundo interno das crianças com TEA, fomentando vínculos afetivos e abrindo caminhos para intervenções mais inclusivas, respeitosas e efetivas.

 

 

Conclusão

 

A presente pesquisa, fundamentada na abordagem da pesquisa-ação, demonstrou que a musicoterapia atua como um dispositivo clínico potente no trabalho com crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), promovendo avanços significativos no desenvolvimento cognitivo, emocional e social. Ao longo das sessões, foram observadas manifestações espontâneas de improvisação, verbalização, coordenação motora, expressão corporal e vinculação afetiva, que ultrapassam os limites dos protocolos tradicionais e revelam formas singulares de subjetivação.

A escuta psicanalítica, aliada aos referenciais da neuropsicologia e à prática musicoterapêutica, possibilitou reconhecer que, mesmo quando a criança não se comunica pela linguagem verbal, há um sujeito que deseja, sente, se expressa e busca o outro. A música, nesse contexto, opera como linguagem simbólica facilitadora do acesso ao mundo interno da criança, oferecendo um espaço de criação e segurança emocional.

Embora a avaliação neuropsicológica baseada em testes quantitativos seja essencial para o diagnóstico de TEA, esta não deve ser dissociada do olhar clínico atento e da observação das manifestações espontâneas da criança em contextos lúdicos, como jogos e outras atividades executivas. Essa abordagem integrada permite compreender a complexidade singular do sujeito, evitando reducionismos que possam invisibilizar suas potencialidades e formas legítimas de expressão.

Além disso, é fundamental reconhecer que o diagnóstico de TEA impacta não apenas a criança, mas também sua família e sua inserção social, muitas vezes impondo limitações e estigmas que dificultam o desenvolvimento e a inclusão plena. Nesse sentido, abordagens terapêuticas que valorizem a escuta sensível, o brincar e a expressão artística — como a musicoterapia — contribuem para ampliar as possibilidades de relação, simbolização e autonomia.

Além da importância da interdisciplinaridade já destacada, a articulação entre neuropsicologia, psicanálise e musicoterapia promove uma escuta ampliada que reconhece o sujeito com TEA em sua totalidade — cognitiva, afetiva, social e simbólica. Essa abordagem evita a fragmentação do cuidado e cria um espaço terapêutico que acolhe as singularidades do desenvolvimento, respeitando a diversidade das formas de expressão e comunicação. A musicoterapia, nesse sentido, funciona como uma ponte entre o mundo interno e externo, facilitando a construção de sentido e a autorregulação emocional (Alvin, 1986; Wigram et al., 2002).

A escuta sensível, fundamental para a prática clínica musicoterapêutica, implica um olhar atento às pequenas manifestações, gestos, vocalizações e ritmos próprios de cada criança, valorizando sua agência e seu modo singular de estar no mundo. Isso está alinhado com a proposta de Maud Mannoni (1977), que enfatiza a importância de reconhecer e acolher os modos próprios de enunciação, ainda que não se conformem às normas convencionais. Tal postura contribui para desconstruir estigmas e amplia o horizonte terapêutico para além do diagnóstico e dos sintomas.

Outro aspecto crucial para o sucesso das intervenções musicoterapêuticas é o envolvimento familiar e a continuidade das práticas musicais no cotidiano da criança. A participação ativa dos familiares, seja por meio de orientações para exercícios musicais em casa ou do próprio engajamento em sessões, fortalece o vínculo afetivo e potencializa os ganhos terapêuticos (Geretsegger et al., 2014). Esse cuidado compartilhado favorece um ambiente mais acolhedor e estimulante, essencial para a promoção da autonomia e do bem-estar emocional.

Apesar dos avanços e benefícios evidenciados, a prática da musicoterapia com crianças com TEA enfrenta desafios, como a necessidade de maior formação especializada dos profissionais, a limitação de recursos em contextos públicos e privados, e a resistência ainda presente em algumas equipes multidisciplinares quanto ao reconhecimento da musicoterapia como recurso terapêutico efetivo. Além disso, a diversidade dentro do espectro impõe a contínua adaptação das estratégias, exigindo do terapeuta constante atualização e sensibilidade clínica (Schwartzman, 2012).

No horizonte futuro, a ampliação de pesquisas que investiguem os mecanismos neurobiológicos ativados pela musicoterapia, assim como estudos longitudinalmente acompanhando os efeitos a longo prazo, são fundamentais para consolidar essa prática como componente indispensável nas políticas públicas de saúde e educação para o TEA. A integração sistemática da musicoterapia nos serviços de atenção à criança poderá contribuir para um atendimento mais humanizado, integral e efetivo.

Portanto, a musicoterapia se afirma não só como um recurso terapêutico, mas como uma forma de promoção de saúde mental que respeita e valoriza a subjetividade, o brincar e a criatividade, aspectos essenciais para o desenvolvimento emocional e cognitivo das crianças com TEA. Este estudo reforça que, ao ampliar o olhar para além dos sintomas, é possível oferecer caminhos de cuidado que promovem qualidade de vida, inclusão e protagonismo infantil.

A presente pesquisa evidenciou que a musicoterapia, fundamentada em bases neuropsicológicas e psicanalíticas, promove avanços significativos no desenvolvimento global de crianças com TEA. Ao reconhecer o sujeito em sua complexidade afetiva, simbólica e relacional, a música opera como mediadora entre o mundo interno e externo, favorecendo vínculos, expressão e autonomia.

A escuta sensível e a valorização do brincar permitiram construir um espaço terapêutico ético, inclusivo e criativo. Reafirma-se, portanto, que o cuidado não deve restringir-se aos sintomas, mas abrir-se à subjetividade e à construção de novos sentidos de existir. A musicoterapia, nesse sentido, transcende o campo clínico, tornando-se uma prática humanizadora e promotora de saúde mental infantil.

Importa destacar a importância de considerar a dimensão afetiva e subjetiva no cuidado clínico, reconhecendo a música como uma linguagem universal capaz de favorecer a comunicação e a constituição do eu.

Conclui-se que a musicoterapia, quando conduzida com fundamentação teórica consistente e sensibilidade clínica, não só promove avanços terapêuticos, mas também representa uma experiência humana transformadora, abrindo caminhos para uma clínica interdisciplinar mais integral, inclusiva e respeitosa às singularidades das crianças com TEA.

 

 

REFERÊNCIAS

 

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