Alfabetização e letramento na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental
Jaqueline Mila Lucena de Oliveira
Neuvane Gamero Andrade Guevara
Lucinéia Guevara Vieira
RESUMO
A alfabetização e o letramento constituem processos fundamentais para o desenvolvimento humano, social e cognitivo, representando pilares estruturadores da educação básica. Na contemporaneidade, as práticas escolares voltadas à aquisição do sistema de escrita e ao uso social da língua escrita passam por transformações significativas, impulsionadas por estudos teóricos, políticas educacionais e mudanças culturais. Este artigo analisa, de forma aprofundada, os processos de alfabetização e letramento na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, discutindo suas concepções, desafios, práticas pedagógicas e implicações para a formação de leitores e escritores competentes. Apresenta-se uma reflexão sobre a importância da alfabetização como sistema linguístico, bem como do letramento enquanto prática social. Discute-se ainda a relação entre linguagem oral, consciência fonológica, desenvolvimento cognitivo e construção da leitura e da escrita. O texto evidencia a necessidade de ações pedagógicas intencionais, planejadas e contextualizadas, que favoreçam a aprendizagem significativa e o protagonismo infantil. Por fim, são analisados desafios contemporâneos, tais como desigualdades sociais, tecnologias digitais, formação docente e políticas públicas. O artigo reforça que alfabetizar letrando é condição essencial para garantir a participação plena dos sujeitos na sociedade e o direito à educação de qualidade.
Palavras-chave: Alfabetização. Letramento. Educação Infantil. Anos iniciais. Práticas de ensino.
INTRODUÇÃO
Os processos de alfabetização e letramento ocupam lugar central nos debates educacionais, especialmente quando se trata da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Aprender a ler e a escrever constitui não apenas uma habilidade escolar, mas uma necessidade social, cultural e cognitiva. A leitura e a escrita possibilitam que o indivíduo se torne participante ativo na sociedade, ampliando seu acesso aos bens culturais, às práticas sociais e às formas de expressão.
O debate sobre alfabetização na contemporaneidade envolve a superação de antigas dicotomias: decodificação versus compreensão, método fonético versus método global, ensino sistemático versus práticas significativas. Hoje, compreende-se que alfabetizar envolve simultaneamente a aquisição do sistema alfabético e o desenvolvimento das capacidades de uso da língua escrita em contextos sociais reais. Ou seja, alfabetizar é também letrar.
Da mesma forma, entende-se que o processo se inicia antes da escolarização formal. Crianças pequenas, ainda na Educação Infantil, têm contato com múltiplas linguagens e vivências letradas no cotidiano, como livros, placas, músicas, histórias, rótulos e tecnologias digitais. Nesse sentido, construir um ambiente alfabetizador desde a primeira infância é fundamental para fortalecer a sensibilidade linguística, o interesse pela escrita e a compreensão de seu valor social.
Considerando essas questões, este artigo discute, de maneira abrangente, as bases conceituais da alfabetização e do letramento, as contribuições da linguística, psicologia cognitiva e pedagogia, além de práticas, desafios e possibilidades para os professores que atuam com crianças em processo de apropriação da leitura e da escrita. Busca-se contribuir para a reflexão docente e para o fortalecimento de práticas pedagógicas contextualizadas, dialógicas e intencionais, que atendam às necessidades reais de aprendizagem das crianças e respeitem suas singularidades.
DESENVOLVIMENTO
- Conceitos fundamentais: alfabetização e letramento
1.1 Alfabetização
A alfabetização pode ser compreendida como o processo pelo qual a criança se apropria do sistema alfabético de escrita, aprendendo as relações entre fonemas e grafemas e desenvolvendo habilidades de leitura e escrita no nível da decodificação e codificação. Trata-se de um processo cognitivo complexo, que envolve percepção auditiva, consciência fonológica, memória, desenvolvimento linguístico e compreensão de regras do sistema da língua.
Autores como Emilia Ferreiro e Ana Teberosky revolucionaram a compreensão da alfabetização ao demonstrar que a criança não aprende por repetição ou memorização mecânica, mas constrói hipóteses sobre a escrita. Essa perspectiva construtivista evidencia o papel ativo da criança e reforça que alfabetizar não se limita ao ensino de letras, sílabas e regras, mas envolve compreender como o sujeito se relaciona com a língua escrita.
1.2 Letramento
O letramento refere-se à capacidade de utilizar a leitura e a escrita em práticas sociais reais, com função comunicativa e cultural. A leitura de um livro, a escrita de um bilhete, o uso de mensagens digitais, a interpretação de placas, o preenchimento de formulários: tudo isso caracteriza práticas de letramento.
Segundo Magda Soares, letrar é inserir o indivíduo nas práticas sociais de leitura e escrita, garantindo que ele se torne um sujeito capaz de interpretar o mundo, comunicar-se e participar socialmente. Assim, o letramento é mais amplo que a alfabetização, pois envolve domínio social, cultural e funcional da escrita.
1.3 Alfabetizar letrando
A concepção contemporânea de alfabetização reconhece que o processo de apropriação do sistema de escrita não pode ser dissociado das práticas sociais de leitura e escrita. Sob essa perspectiva, alfabetizar letrando significa integrar o ensino das correspondências grafema-fonema com atividades significativas e contextualizadas, possibilitando que a criança compreenda tanto o funcionamento do código quanto sua função social. Essa abordagem supera dicotomias históricas entre métodos, valorizando uma prática pedagógica equilibrada, que considera o caráter linguístico e, simultaneamente, cultural da língua escrita.
Quando a criança participa de situações reais de leitura e escrita — como produzir uma lista de compras, interpretar um bilhete, ler um conto, escrever um convite ou explorar um cartaz —, ela percebe que a escrita não é um conjunto de símbolos arbitrários a serem memorizados, mas um meio eficaz de comunicação e interação social. Nesse sentido, trabalhar com gêneros textuais variados é fundamental, pois permite que o aluno entenda que cada texto tem uma função, um formato, um público e uma intenção específica. Esse contato constante com diferentes gêneros contribui para ampliar repertórios linguísticos e favorecer a compreensão de que a linguagem escrita se organiza de modos distintos conforme sua finalidade.
Ao mesmo tempo, alfabetizar letrando exige intencionalidade pedagógica. O professor precisa planejar intervenções que favoreçam a reflexão sobre o sistema alfabético, como atividades de consciência fonológica, análise de sílabas, identificação de letras, reconhecimento de padrões sonoros e ortográficos, entre outras ações que auxiliem a criança a compreender como se dá a relação entre o som e a escrita. Dessa forma, o código não é ensinado de forma mecânica e descontextualizada, mas articulado às necessidades comunicativas percebidas pelos próprios estudantes no uso cotidiano da linguagem escrita.
Outro aspecto central dessa abordagem é a interação. A aprendizagem ocorre em situações sociais e dialógicas, nas quais o professor atua como mediador, instigando hipóteses, problematizando, orientando e ampliando as possibilidades de leitura e escrita dos alunos. A criança, por sua vez, assume postura ativa e investigativa, refletindo sobre o funcionamento da escrita, revisando seus textos, confrontando sua produção com modelos reais e avançando progressivamente em suas hipóteses.
Assim, alfabetizar letrando é garantir que a aprendizagem da leitura e da escrita seja significativa, prazerosa e funcional, permitindo que os estudantes se tornem leitores e escritores competentes, capazes de atuar com autonomia em diferentes situações comunicativas. Trata-se de uma concepção que respeita o desenvolvimento infantil, valoriza a cultura escrita e assegura que o aprendizado do código esteja sempre vinculado às práticas sociais que dão sentido à linguagem.
- Alfabetização na Educação Infantil
2.1 O papel da Educação Infantil
A Educação Infantil desempenha um papel essencial na construção das bases que sustentam o processo de alfabetização nos anos seguintes. Embora não tenha como objetivo a alfabetização formal, essa etapa da educação básica é responsável por proporcionar às crianças experiências fundamentais que favorecem o desenvolvimento linguístico, cognitivo, motor, social e emocional — aspectos que influenciam diretamente a futura aprendizagem da leitura e da escrita. Assim, a Educação Infantil se configura como um espaço de constituição de sujeitos capazes de interagir, comunicar-se e participar ativamente das práticas sociais, incluindo aquelas relacionadas ao universo da linguagem escrita.
Nesse contexto, o contato precoce com livros e materiais gráficos exerce papel determinante. A convivência com obras literárias, rótulos, embalagens, jornais, revistas, cartazes, calendários e outros textos presentes no cotidiano permite que a criança compreenda, ainda que de forma intuitiva, que a escrita possui funções sociais específicas. Essa exposição inicial contribui para que ela desenvolva comportamentos leitores, como manusear livros, observar imagens, reconhecer formatos de textos e compreender que a escrita transmite mensagens.
Outro aspecto fundamental na Educação Infantil é o desenvolvimento da oralidade. Conversas espontâneas, rodas de conversa, recontos, dramatizações e cantigas ampliam o vocabulário, fortalecem a organização lógica do pensamento e estimulam habilidades comunicativas importantes para a compreensão e produção de textos. A oralidade, enquanto linguagem primeira, constitui base para que, posteriormente, a criança estabeleça relações entre fala e escrita, favorecendo o processo de alfabetização.
As brincadeiras também desempenham papel crucial. Por meio delas, as crianças exploram sons, ritmos, rimas, entonações e padrões linguísticos, desenvolvendo consciência fonológica de maneira lúdica e significativa. Jogos que envolvem segmentação de palavras, identificação de sons iniciais, aliterações e rimas contribuem para a construção de habilidades cognitivas que facilitarão a aprendizagem do sistema alfabético no Ensino Fundamental. A brincadeira, portanto, não é apenas um recurso pedagógico, mas um modo de ser e aprender na infância, possibilitando o desenvolvimento integral.
Além disso, a Educação Infantil deve garantir experiências variadas com marcas gráficas e formas de expressão. Quando a criança desenha, escreve do seu jeito, imita letras ou cria símbolos para representar palavras, ela experimenta diferentes caminhos para construir hipóteses sobre a escrita. Esses registros espontâneos, conhecidos como hipóteses pré-silábicas e silábicas iniciais, são indícios de que o processo de alfabetização já começou de forma natural, mesmo antes do ensino formal.
A exploração de diferentes gêneros textuais e narrativas também amplia o repertório cultural e linguístico infantil. Histórias, poemas, textos informativos simples, parlendas, quadrinhos e outras manifestações da cultura escrita enriquecem a compreensão da estrutura dos textos e permitem que as crianças percebam a diversidade de funções e formas de expressão textual. Assim, a Educação Infantil cria condições para que o letramento se inicie de modo natural e contextualizado.
Portanto, o papel da Educação Infantil é promover um ambiente alfabetizador no sentido amplo — um espaço rico em linguagem, interações, brincadeiras, narrativas e experiências estéticas — garantindo que cada criança desenvolva as habilidades necessárias para ingressar no processo formal de alfabetização com curiosidade, confiança e autonomia. Ao valorizar o brincar, a oralidade, a exploração e a criatividade, essa etapa da educação assegura uma base sólida para que o aprendizado da leitura e da escrita ocorra de forma significativa e prazerosa nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
2.2 Linguagem oral como base para a escrita
A oralidade é uma das principais precursoras da alfabetização. Crianças que participam de situações de conversa, escuta ativa, relatos, dramatizações e histórias desenvolvem vocabulário, estruturas sintáticas e capacidades interpretativas fundamentais para a compreensão de textos escritos.
2.3 Consciência fonológica e desenvolvimento linguístico
A consciência fonológica, entendida como a capacidade de perceber e manipular sons da fala, constitui habilidade preditora para a alfabetização. Atividades como rimas, aliterações, segmentação silábica e jogos sonoros contribuem para a construção da relação entre fala e escrita.
2.4 Ambientes alfabetizadores
A Educação Infantil deve organizar espaços que favoreçam experiências de leitura e escrita: biblioteca acessível, cantos de escrita, materiais gráficos, exposição de textos funcionais, livros ao alcance das crianças, tecnologias digitais educativas, entre outros. O ambiente comunica valores e incentiva práticas letradas naturais e prazerosas.
- Alfabetização nos anos iniciais do Ensino Fundamental
3.1 A alfabetização como direito
A alfabetização, entendida como a aprendizagem inicial da leitura e da escrita, constitui um direito fundamental de toda criança e baseia-se no princípio de que o acesso ao conhecimento escrito é condição indispensável para o pleno exercício da cidadania. Nos anos iniciais do Ensino Fundamental, esse processo se torna prioridade, pois é nesse período que se consolidam as habilidades essenciais que permitirão ao aluno participar de práticas sociais de leitura e escrita ao longo de toda a vida escolar. Assim, alfabetizar não é apenas ensinar a decodificação do código alfabético, mas possibilitar o ingresso na cultura escrita de forma crítica, autônoma e significativa.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reforça essa perspectiva ao estabelecer que a alfabetização deve ocorrer preferencialmente até o 2º ano do Ensino Fundamental, definindo habilidades específicas relacionadas à consciência fonológica, compreensão de textos, produção escrita e apropriação do sistema de escrita alfabética. A BNCC orienta que essas aprendizagens aconteçam de maneira integrada, contextualizada e articulada com práticas sociais reais de leitura e escrita, superando modelos mecânicos e descontextualizados.
De modo complementar, a Política Nacional de Alfabetização (PNA) destaca a alfabetização como prioridade educacional no país, com foco na garantia da equidade e na necessidade de fortalecer práticas pedagógicas baseadas em evidências científicas. A PNA orienta ações que envolvem formação de professores, avaliação diagnóstica, acompanhamento do progresso do aluno e promoção de ambientes alfabetizadores de qualidade. Ao reconhecer que todas as crianças têm direito a aprender, a política enfatiza que o fracasso escolar não deve ser naturalizado, mas enfrentado por meio de intervenções pedagógicas planejadas, monitoramento sistemático e estratégias diversificadas de ensino.
Assim, ao tratar a alfabetização como direito, reforça-se a responsabilidade compartilhada entre escola, políticas públicas e sociedade. Garantir que todas as crianças aprendam a ler e escrever no tempo adequado significa ampliar suas possibilidades de participação social, fortalecer sua autonomia intelectual e promover justiça educacional. Dessa forma, os anos iniciais se configuram como uma etapa crucial e estratégica, que exige intencionalidade pedagógica, condições estruturais adequadas e o compromisso de assegurar que nenhum estudante fique à margem da cultura escrita.
3.2 Ensino sistemático e intencional
O ensino do sistema alfabético exige intencionalidade pedagógica, planejamento e sistematização. A criança precisa compreender a relação entre grafemas e fonemas, desenvolver fluência, ampliar vocabulário e avançar na compreensão textual. Isso requer atividades específicas, progressivas e avaliativas.
3.3 Gêneros textuais no processo de alfabetização
O trabalho com gêneros textuais no processo de alfabetização é fundamental para que a aprendizagem da leitura e da escrita seja significativa, funcional e conectada às práticas sociais reais. A alfabetização não se limita ao domínio do código alfabético; ela envolve compreender para que e por que se lê e se escreve. Nesse sentido, os gêneros textuais oferecem contextos autênticos de uso da língua, permitindo que as crianças percebam a escrita como uma prática viva e cotidiana, e não como um exercício mecânico e descontextualizado.
Ao utilizar bilhetes, convites, listas, quadrinhos, poemas, receitas, notícias, mapas, infográficos e textos jornalísticos infantis, o professor cria situações reais de comunicação, nas quais a leitura e a escrita ganham sentido. Cada gênero textual possui uma função social específica — informar, narrar, instruir, convidar, orientar — e ao explorar essas finalidades, as crianças desenvolvem habilidades de compreensão, interpretação e produção textual de forma integrada. Assim, aprendem que diferentes textos exigem diferentes formas de leitura, diferentes estruturas e diferentes linguagens.
Esse trabalho também favorece a reflexão sobre as características formais da escrita. A análise de bilhetes, por exemplo, pode ajudar a criança a compreender a organização espacial do texto, enquanto receitas e listas são excelentes modelos para observar a sequência lógica e a concisão da linguagem. Poemas e quadrinhos ampliam a sensibilidade estética e a apreciação da literatura infantil, ao mesmo tempo em que estimulam a exploração da sonoridade da língua, contribuindo para o desenvolvimento da consciência fonológica.
Além disso, a diversidade de gêneros textuais promove a inclusão e respeita os diferentes modos de aprender. Crianças que têm mais facilidade com imagens podem se beneficiar de infográficos e histórias em quadrinhos; aquelas que gostam de atividades práticas podem se envolver com receitas e instruções; e as que demonstram interesse por narrativas podem mergulhar em contos e pequenas crônicas infantis. Dessa forma, a escola amplia o repertório cultural dos alunos e cria oportunidades variadas para que cada um se aproprie da linguagem escrita conforme seu ritmo e estilo de aprendizagem.
Portanto, trabalhar com gêneros textuais no processo de alfabetização fortalece a relação entre alfabetizar e letrar. Ao mesmo tempo em que desenvolvem o conhecimento sobre o funcionamento do sistema de escrita, as crianças experimentam usos reais da linguagem, percebendo seu valor social e comunicativo. Essa abordagem contribui para formar leitores e escritores competentes, capazes de transitar por diferentes textos e contextos comunicativos ao longo da vida escolar e social.
3.4 O papel das práticas de leitura
A leitura deve ser trabalhada diariamente e de múltiplas formas: leitura pelo professor, leitura compartilhada, leitura autônoma, leitura por interesse, leitura de imagens e leitura multimodal. Isso amplia o repertório cultural e fortalece habilidades interpretativas.
3.5 Escrita: da hipótese à produção textual
A escrita deve ser compreendida como processo: planejamento, rascunho, revisão e construção. Crianças devem escrever com frequência, em diferentes gêneros e com diferentes propósitos. O professor atua como orientador, oferecendo feedback, mediação e intervenções significativas.
- A formação do leitor e do escritor
4.1 O leitor crítico
Formar leitores críticos é uma das tarefas mais relevantes e complexas da escola contemporânea. Em uma sociedade altamente marcada pela circulação de informações, pela velocidade da comunicação e pela multiplicidade de discursos, não basta que o aluno apenas decodifique palavras: é necessário que compreenda, analise, questione e posicione-se diante do que lê. Nesse sentido, a alfabetização e o letramento incluem também a formação de leitores que sejam capazes de ir além da superfície textual, explorando sentidos implícitos e compreendendo as relações entre texto, contexto e intenção comunicativa.
O leitor crítico é aquele que mobiliza habilidades de leitura inferencial, ou seja, que consegue “ler nas entrelinhas”, identificar informações que não estão explícitas e construir significados a partir de pistas textuais e conhecimentos prévios. Essa capacidade de inferir torna a leitura um processo ativo, em que o sujeito participa da construção do sentido e não apenas recebe informações de forma passiva. Para que isso aconteça, a escola deve promover práticas de leitura que estimulem o levantamento de hipóteses, a formulação de perguntas, a comparação entre textos e a projeção de interpretações possíveis.
Outro aspecto fundamental na formação do leitor crítico é a capacidade de relacionar texto e contexto. Todo texto é produzido em um tempo, em um lugar, com uma finalidade e por alguém que ocupa determinada posição no mundo. Compreender essas relações ajuda o aluno a perceber que a linguagem não é neutra, mas carregada de valores, ideologias e intenções. Ao analisar notícias, propagandas, histórias, poemas ou textos de opinião, as crianças e os jovens começam a identificar como determinados efeitos de sentido são construídos e como o discurso pode influenciar comportamentos, crenças e decisões.
Identificar intencionalidades também é central nesse processo. Leitores críticos percebem quem fala, para quem fala e com qual objetivo. Isso é especialmente importante na era digital, onde notícias falsas, discursos manipulativos e conteúdos de baixa credibilidade circulam com facilidade. Ao desenvolver essa competência desde a Educação Infantil e os anos iniciais, a escola contribui para a formação de cidadãos mais conscientes, capazes de analisar criticamente o que consomem e de tomar decisões informadas.
Por fim, o desenvolvimento do pensamento crítico exige um ambiente alfabetizador que valorize a argumentação, a dúvida e o diálogo. Práticas sociais de leitura — rodas de conversa, debates, leitura compartilhada, projetos de investigação e produção de textos autorais — devem estimular que o aluno expresse suas ideias, compare pontos de vista e sustente suas interpretações com base em evidências. O professor, como mediador, cria condições para que a leitura seja um espaço de reflexão e não de mera reprodução de respostas prontas.
Assim, formar o leitor crítico significa reconhecer a leitura como uma ferramenta de emancipação intelectual e social. É capacitar o estudante para navegar com autonomia em um mundo complexo, interpretar discursos, compreender diferentes perspectivas e, sobretudo, construir seu próprio olhar sobre a realidade.
4.2 Escrita como expressão e autonomia
A escrita permite expressar sentimentos, narrar experiências, argumentar e comunicar-se. Desenvolver autonomia na escrita é fundamental para a participação cidadã.
4.3 A literatura infantil como estratégia de aprendizagem
A literatura infantil tem papel insubstituível na formação leitora. Histórias, contos, fábulas, poesias e narrativas multimodais estimulam a imaginação, a empatia e o gosto pela leitura.
- A influência das tecnologias digitais no processo de alfabetização
5.1 Cultura digital na infância
As crianças são expostas diariamente a telas, mídias, vídeos e aplicativos. Cabe à escola integrar criticamente essas tecnologias, transformando-as em aliadas do processo de aprendizagem.
5.2 Recursos interativos
Jogos educativos, plataformas de leitura, aplicativos de consciência fonológica e ambientes virtuais contribuem para o desenvolvimento da fluência, decodificação e compreensão.
5.3 Multimodalidade e leitura digital
As crianças aprendem a ler textos multimodais que integram imagens, áudios, vídeos e hiperlinks. A escola precisa trabalhar a leitura crítica desses textos para preparar os alunos para o mundo digital.
- O papel do professor no processo de alfabetização e letramento
6.1 Professor como mediador
O professor não é apenas transmissor de conteúdo, mas mediador da aprendizagem. Ele interpreta o desenvolvimento da criança, identifica dificuldades e organiza intervenções pedagógicas.
6.2 Intervenções qualificadas
Boas intervenções exigem conhecimento sobre hipóteses de escrita, didática da língua portuguesa, gêneros textuais e estratégias metodológicas.
6.3 Avaliação formativa e contínua
A avaliação deve ser diagnóstica, processual e formativa, possibilitando identificar avanços e ajustar o planejamento pedagógico.
- Desafios contemporâneos da alfabetização
7.1 Desigualdades sociais
As desigualdades sociais representam um dos maiores desafios para a alfabetização no Brasil e no mundo. As condições socioeconômicas das famílias interferem diretamente nas oportunidades de acesso a bens culturais, como livros, brinquedos educativos, tecnologia, espaços de convivência e estímulos linguísticos diversificados. Crianças que vivem em contextos de vulnerabilidade tendem a ter menos contato com práticas de leitura, vocabulário reduzido, menor exposição à linguagem escrita e menor participação em interações dialógicas ricas — fatores fundamentais para o desenvolvimento da consciência fonológica, da oralidade e do interesse pela escrita.
Nos ambientes familiares mais favorecidos economicamente, é comum encontrar livros infantis, contação de histórias, rodas de leitura, acesso à internet, práticas de letramento mediadas pelos adultos e experiências que ampliam repertórios culturais. Já em realidades de vulnerabilidade, a presença de materiais de leitura costuma ser limitada, e as famílias, muitas vezes sobrecarregadas por longas jornadas de trabalho ou pela falta de recursos, enfrentam dificuldades para dedicar tempo às atividades educativas com as crianças. Essas desigualdades, quando não enfrentadas com políticas públicas robustas, tendem a se reproduzir e se aprofundar.
Nesse cenário, o papel da escola torna-se ainda mais central e estratégico. A instituição escolar é, para muitas crianças, o principal — e às vezes o único — espaço de acesso sistemático a práticas de leitura e escrita. Cabe à escola desenvolver ações intencionais para garantir que todas as crianças tenham oportunidades reais de aprender, rompendo com o ciclo de exclusão que geralmente acompanha a pobreza. Ambientes alfabetizadores ricos, bibliotecas acessíveis, mediação de leitura qualificada, contato com diferentes gêneros textuais, acompanhamento individualizado e práticas pedagógicas diversificadas tornam-se estratégias essenciais.
Além disso, é necessário compreender que as desigualdades não se limitam à dimensão econômica: envolvem também diferentes formas de exclusão, como racismo, insegurança alimentar, falta de saneamento básico, violência urbana, ausência de equipamentos culturais e desigualdade de acesso às tecnologias digitais. Esses fatores afetam a permanência escolar, a atenção, o bem-estar emocional e o desenvolvimento cognitivo das crianças, impactando diretamente o processo de alfabetização.
Para enfrentar essas desigualdades, são fundamentais políticas públicas que garantam financiamento adequado, formação docente contínua, programas de incentivo à leitura, ampliação de bibliotecas e acesso à tecnologia com equidade. Projetos intersetoriais que integrem educação, saúde e assistência social podem contribuir para que a criança tenha condições mais favoráveis de aprender, reconhecendo que o fracasso escolar não é responsabilidade individual, mas resultado de desigualdades estruturais.
Assim, compreender a alfabetização à luz das desigualdades sociais significa assumir um compromisso ético e político com a justiça educacional. Promover a equidade não significa tratar todos de forma igual, mas oferecer mais a quem mais precisa, garantindo que cada criança tenha condições reais de ingressar e se desenvolver na cultura escrita. Somente assim será possível avançar na construção de uma sociedade mais democrática, inclusiva e capaz de assegurar o direito à alfabetização para todos.
7.2 Formação docente
Muitos professores não receberam formação adequada sobre alfabetização e precisam de políticas de formação continuada e acompanhamento pedagógico.
7.3 Políticas públicas
A alfabetização depende de políticas eficazes, alinhadas à ciência, à pedagogia e às necessidades reais dos alunos e professores.
7.4 Diversidade e inclusão
Alunos com deficiências, transtornos ou dificuldades de aprendizagem precisam de acompanhamento especializado, adaptações e intervenções diferenciadas.
CONCLUSÃO
A alfabetização e o letramento, entendidos de forma integrada, constituem processos fundamentais para garantir o direito à educação e à participação social plena. A Educação Infantil e os anos iniciais do Ensino Fundamental representam etapas decisivas para o desenvolvimento da leitura e da escrita, exigindo práticas pedagógicas intencionais, contextualizadas, afetivas e baseadas em evidências.
A construção da linguagem escrita envolve aspectos cognitivos, linguísticos, sociais, emocionais e culturais. Por isso, o professor assume papel central como mediador, organizador de ambientes alfabetizadores, planejador de experiências significativas e avaliador contínuo do processo. Alfabetizar letrando significa ensinar o sistema alfabético de forma integrada às práticas sociais de leitura e escrita, proporcionando sentido, funcionalidade e autonomia às crianças.
Diante dos desafios contemporâneos — como desigualdades sociais, avanços tecnológicos e necessidades inclusivas — é necessário repensar práticas, investir em formação docente e construir políticas públicas que assegurem condições de trabalho e recursos pedagógicos adequados.
Alfabetizar e letrar, portanto, é transformar vidas, ampliar horizontes e formar cidadãos capazes de interpretar o mundo, agir sobre ele e construir novos sentidos. É missão da escola, dos professores, das famílias e da sociedade garantir que todas as crianças tenham acesso a essa aprendizagem fundamental, base de toda trajetória escolar e cidadã.
REFERÊNCIAS
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SOARES, Magda. Alfabetização e Letramento. São Paulo: Contexto, 2003.
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