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A importância da simplicidade nos poemas “Mundo pequeno” e “O apanhador de desperdícios”, de Manoel de Barros

Nathaline Amorim de Oliveira

Suzana Garcia de Faria

Fernanda Lemos da Rosa

 

DOI: 10.5281/zenodo.17581275

 

 

RESUMO

Este artigo tem como objetivo refletir e discutir o sentimento de simplicidade nas obras “Mundo Pequeno” e “O Apanhador de Desperdício” de Manuel de Barros, com base nas características de suas poesias, a qual o autor carrega traços de seus princípios, sua infância e ingenuidade, o que compõe sua formação artística. Manoel de Barros, considerados um dos maiores autores Mato-grossense e que teve seu reconhecimento em todo Brasil, tem como uma de suas principais características a arte de brincar com as palavras, busca em seus poemas relembrar momentos a qual remete ao Pantanal, lugar onde passou sua infância e que carrega lembranças marcante em suas obras, com intuito de exaltar a importância as coisas simples, que muitas vezes não são notadas por muitos diante dos mundo que vivemos, onde as coisas importantes são reconhecidas pelo seu valor financeiro e não ao sentimento que desperta.

 

Palavras-chave: Poesia. Modernismo. Manuel de Barros.

 

 

INTRODUÇÃO

 

Neste artigo, buscaremos ao longo de nossa reflexão, trabalhar a questão da simplicidade presente nos poemas “Mundo Pequeno” e “O Apanhador de Desperdícios”, escrito pelo poeta Manoel de Barros.

No interior dos acontecimentos que mexeram com as estruturas poéticas tradicionais no século XX, Manoel de Barros[1] dedicou sua obra à retratação da natureza, mas não escreveu e refletiu apenas sobre o belo, o considerado bonito. 

Os poetas, os escritores em geral, e os pintores que situam sua produção no século XX, ou seja, no período no Modernismo brasileiro, efetuaram grandes deslocamentos acerca do fazer poético dos estilos literários anteriores. Nesse momento histórico, o povo brasileiro encontrava-se imbuído do ideário instalado pela Semana de Arte Moderna, que promoveu não só uma mudança no meio artístico, mas contestou também, de modo geral, o ser humano e seus modos de exploração no cenário social.

 

 

  1. DESENVOLVIMENTO

 

2.2A poesia de Manuel de Barros e as mudanças após a Semana de Arte Moderna

 

O estilo tradicional parnasiano de escritura do poema, com rimas e sonoridade muito bem marcada, cedeu o espaço para a circulação de novos estilos, que priorizavam, sobretudo, versos livres e o homem como temática principal. Com efeito, os poetas brasileiros pertencentes a esse período distanciaram-se totalmente do lirismo e do sentimentalismo inerentes à poesia do Parnasianismo e do Simbolismo, movimentos literários que antecederam a Semana de Arte Moderna (ou semana de 1922).

Para Candido (2004), esse distanciamento da metaforização, do sentimentalismo, é inerente ao Modernismo, que tem como princípio fundamental a ruptura com os antigos padrões do fazer poético. Dentre os assuntos mais recorrentes na produção dos artistas modernos, destacam-se: a denúncia social, o ser humano pela exploração laboral, a valorização de elementos considerados insignificantes, enfim, um novo pensamento perpassa a produção poética recriando o pensamento artístico vigente.

No que tange à produção de Manoel de Barros, recortamos dois de seus poemas –Mundo Pequeno e O apanhador de desperdícios– de modo a mostrar como esse artista retrata a mudança de visão instalada pelo período do Modernismo. De acordo com Bosi (2000), a forma material do poema evoca, edifica, em nós, uma imagem, ou seja, o poema, ao mesmo tempo em que é produzido ao nível do discurso, enquanto palavra, traz implicado no plano da interpretação uma imagem, seja ela do cotidiano, envolvendo objetos e/ou pessoas, seja da natureza, por meio do retrato dos animais.

 

 

3.IMAGEM, DISCURSO: MUNDO PEQUENO

 

Em “O ser e o tempo da poesia”, Bosi (2000) ressalta que, ao analisarmos um poema, temos de externar a imagem que a forma material da poesia – o discurso – produz em nós. Isso significa que, para o autor, o poema é, ao mesmo tempo, um espaço empírico, constituído por palavras, versos, estrofes, combinadas por rimas, e uma projeção, uma imago, produzida a partir da articulação dos elementos que compõem a forma material do texto. Tal imagem, por conseguinte, é produto dos recursos pelos quais o autor utiliza a propósito de sua intenção: musicalidade do poema, irregularidade das estofes, palavras e expressões específicas de contextos sociais etc.

 

“MUNDO PEQUENO”

 

O mundo meu é pequeno, Senhor.

Tem um rio e um pouco de árvores.

Nossa casa foi feita de costas para o rio.

Formigas recortam roseiras da avó.

Nos fundos do quintal há um menino e suas latas

maravilhosas.

Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas

com aves.

Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os

besouros pensam que estão no incêndio.

Quando o rio está começando um peixe,

Ele me coisa

Ele me rã

Ele me árvore.

De tarde um velho tocará sua flauta para inverter

os ocasos.

 

Neste poema Manuel de Barros procura mostrar a simplicidade do seu mundo, remetendo a sua infância vivida no pantanal, podemos perceber isso ao ver elementos no poema como o rio. A beleza do poema encontra-se na simplicidade de sua vida, a importância que ele dá para as formigas, as brincadeiras com latas, que mesmo não tendo nenhum valor financeiro para ele eram vistas como maravilhosas, sendo que normalmente uma criança não teria grande interesse. A simplicidade da vida ao ver um velho tocando uma flauta.

Durante as leituras das obras de Manoel de Barros podemos notar a suas peraltagens que remetem a sua infância, o ser-poeta, conceitos poéticos sobre a matéria da poesia, a consciência do faz-de-conta das brincadeiras. Em seus poemas vemos que o ato de imaginar é visto simbolizando o impossível na vida real, diferente do imaginário que tudo pode, com isso podemos notar que Manoel de Barros tem uma relação com a sua infância no mundo da poesia, no entanto que ele é considerado um poeta inovador, inventor de palavras.

Nos poemas de Manoel de Barros percebemos que sua arte de escrever é algo extraordinário diferenciando- se do comum, podemos notar também que a linguagem utilizada por Manoel é uma linguagem simples de fácil compreensão, levando o leitor a buscar a liberdade e a inovação da vida

Desta forma, podemos concluir que Manoel faz uma ligação entre o mundo infantil com a poesia, ou seja, em seu poema é visível a simplicidade, a pureza, a imaginação de uma criança, mostrando assim que o poeta deve pensar, criar imaginar como uma criança sem medo, pois tudo é possível na imaginação e na poesia.

Diante disso, observamos que seus poemas são marcados de características importantes, uma delas é a utilização da paisagem, da natureza e a simplicidade, ou seja, deixa o mundo capitalista, o materialismo e valoriza as coisas naturais da vida, como o rio e os animais.

 

 

4.IMAGEM, DISCURSO: O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS

 

No poema “O apanhador de desperdícios” iremos analisar à estrutura profunda do poema, façamos uma análise de sua superficialidade, a começar pelo título.

 

O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS

 

Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras

fatigadas de informar.

Dou mais respeito

às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas.

Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim esse atraso de nascença.

 

Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios:

Amo os restos

como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.

Porque eu não sou da informática:

eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios.

 

O fato de apanhar o desperdício sugere uma ideia que, de antemão, traz para a figura do eu-lírico uma característica atípica dos seres humanos. Vale notar que, ao escrever o poema, o autor começa-o e termina-o com uma mesma sentença: “Uso a palavra para compor meus silêncios”. Essa repetição é utilizada para reforçar a ideia introduzida, que, em suma, resume todo o conteúdo desenvolvido ao longo do texto. Ao final, confirma-se com a mesma ideia: um eu-lírico que dá importância ao que, normalmente, as pessoas preterem ou simplesmente nem sequer reparam. Mas, perguntamo-nos, de quais desperdícios fala o eu-poético de Manoel de Barros neste poema?

O corpo do poema parece descrever um cenário cuja narrativa se volta à configuração de uma realidade. No poema, se fala de insetos, pedras, sapos, tartarugas, isto é, elementos que podem ser considerados imperceptíveis, dada a correria diária, industrial e mercadológica promovida no século XX, porém são elementos que fazem parte de sua infância vivida no pantanal, ou seja para Manoel esses elementos tem uma importância sentimental pois remetem a uma parte da sua vida,  ao mesmo tempo para outras pessoas podem ser elementos que não vão ter valor algum, pois não remetem para nenhuma lembrança que possa despertar algum sentimento .

 Esse fato se justifica quando o autor nomeia estes seres como elementos “desimportantes”, o que, para ele, ganha lugar de destaque na representação e na construção da poesia. A pesquisadora Grácia-Rodrigues comenta de uma forma simples e resumida como é tratada a relação dos poemas de Manoel Bandeira, a linguagem e o pantanal:

 

A poesia de Manoel de Barros não é uma representação naturalista do Pantanal, porém recria, a partir da memória, uma parte desse cenário brasileiro: águas, bichos, árvores e pedras em um mundo de musgos e de lagartos, com palavras que bafejam halo de vida. Assim, o poeta nos traz a memória de coisas (que, de tão esquecidas, tornaram-se desconhecidas) e nos apresenta um lado insólito da vida: o olhar do poeta mapeia o chão e seus componentes; reedita a criação do mundo, ordena as formas do caos em um “logos” com a pureza da ancestralidade mítica. (GRÁCIA–RODRIGUES, 2006, p. 33)

 

A partir disso, vê-se que se trata de um eu-lírico que não está preso à realidade nem ao caos que está lhe conforma. Ao contrário, busca perceber, nas coisas/seres mais simples, considerados insignificantes, o real valor da realidade.

 

O poeta lírico, ao recriar sua experiência, convoca um passado que é um futuro. Não é paradoxo afirmar que o poeta é como as crianças, os primitivos, em suma, como todos os homens quando dão rédea solta à sua tendência mais profunda e natural – é um imitador profissional. Essa imitação é criação original: evocação, ressurreição, recriação de algo que está na origem dos tempos e no fundo de cada homem, algo que se confunde com o tempo e conosco, e que, sendo de todos, é também único e singular. (PAZ, 1982: 80-1)

 

Ao retornarmos ao nome do poema “O Apanhador de Desperdício” seria então dizer que Barros resgata em seus poemas muitas das coisas simples que não as damos valor e que para ele é um desperdício, como os insetos, os ratos, passarinhos, as moscas, sendo muitos desses elementos encontrados em seu quintal que seria o pantanal, um lugar de muitos bichos, plantas e simplicidades.

Diante disso, no seu poema encontramos características importantes que o autor faz para afirmar a primazia que este confere ao que ele chama de desimportante sobre outras coisas/seres/ações que os seres humanos, normalmente, considerariam como prioritário. Dentre estas antíteses, destacam-se tartaruga x mísseis; quintal x mundo; informática x invencionática. Vemos que atualmente o mundo está voltado para a era tecnológica, as pessoas têm pressa de tudo, as coisas se desvalorizam muito rápido, pois logo está produzindo algo melhor, atualizado e inovador o que faz com que a simplicidade da vida se perca.

 Nota-se, também, que o autor afirma a desnecessidade das palavras, senão para compor seus silêncios, ou seja, silêncios que refletem sua preocupação com o “desimportante”, imperceptível, nesse momento vemos claramente que Manoel não era apegado a coisas de valores e sim a sentimentos.

Como podemos visualizar, o poeta constrói sua escrita falando sobre animais que certamente não ocupariam a fazer poético parnasianista. Assim, o autor enaltece a velocidade da tartaruga, os sapos, os passarinhos, as moscas etc. de modo que sua composição transborda simplicidade e apelo ao que outrora poderia ser tomado como “insignificante”.

Além disso, vemos também a presença de elementos como água, chão e quintal, que marcam o caráter telúrico da poesia. Trata-se de um eu-lírico que se significa por meio da simplicidade e, assim, se identifica com ela. Percebe-se também que o poema é recheado por disjunções, antíteses, que, de certa forma, estabelecem uma imagem de equilíbrio para o texto: a lentidão da tartaruga e a rapidez do míssil.

Manoel, neste poema, destaca-se, ainda, pelos neologismos. Essas criações de palavras sugerem o deslocamento principal realizado eu-lírico: o lugar-comum do poeta cede espaço para as coisas e seres que são vistos como secundários, em seus poemas vimos o rompimento com a gramática, reinvertendo as regras da língua, porém de uma maneira inteligente:

 

... poesia pra mim é a loucura das palavras, é o delírio verbal, a ressonância das letras e o ilogismo. Sempre achei que atrás da voz dos poetas moram crianças, bêbados, psicóticos. Sem eles a linguagem seria mesma. (...) Prefiro escrever o desanormal (BARROS, 2000, p. 63).

 

Quanto à estrutura do poema, vemos, de antemão, uma irregularidade nos versos, que, por sua vez, não respeitam uma continuidade sonora e que, portanto, não estabelecem rimas entre si. As descontinuidades dos sons, assim como neologismos, representam a fuga que o homem tem da realidade, que o massacra, que o oprime, encontrando na poesia simples, telúrica, o material poético que faz transbordar o valor das coisas “desimportantes”.

Desse equilíbrio, vemos produzir uma imagem de natureza que, ao contrário da composição caótica que acomete a sociedade – mediada pela tecnologia e pela informação, é estruturada pela ordem, organização que a própria natureza mantém consigo mesmo, seus elementos.

O eu lírico retrata uma ordem própria à natureza, através de um sentimento de pertencimento a terra. Essa significação acontece uma vez que se trata de um autor telúrico, cuja valorização do espaço do qual é fruto é um modo de afirmação da identidade (mato-grossense). Assim, observamos que a poesia de Barros reelabora

 

[...] o prisma antropomórfico dominante na literatura universal que sempre afastou o humano do natural e ressaltou ainda mais a dicotomia natura versus cultura, propondo que os homens assumam o que têm de igual a bichos e plantas. É o homem civilizado que se mistura “ao verdor”: “Sente-se, pois, então que árvores, bichos e pessoas têm natureza assumida igual” (ALMEIDA, 2012, p. 153).

 

A produção poética expõe o conflito instalado por um certo tom bucólico e a modernização: os animais e o avanço tecnológico/científico que massacra, que desconsidera a vida, a simplicidade das coisas verdadeiramente significantes.

 

 

CONCLUSÃO

 

Desse modo, vemos que a poética de Manoel de Barros funciona como um refúgio pastoril brasileiro e contemporâneo, que faz do cenário natural, imbuído das simplicidades cotidianas, um lugar marcado pela relação intrínseca de um eu-lírico com a terra. Nesse movimento, tem-se um discurso engajado em alertar os seres humanos acerca de uma realidade não humana, insensível, indiferente às “pequenas coisas”, que nos cerca.

Assim, vemos que a sonoridade e os jogos antitéticos do poema caminham paralelos aos acontecimentos da fauna e da flora, de um cenário bucólico ressignificado por traços de um autor moderno que, através de uma escrita onomatopaica, escreve e inscreve seus desejos sobre um cenário que, por vezes, passa despercebido do olhar humano.

 

 

Referências bibliográficas

 

ALMEIDA, Sherry. Oficina de transfazer natureza: a poesia pantaneira de

 

Manoel de Barros. Revista Digital Intersemiose, Jun/Dez 2012, p.144-158

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

 

______. “Imagem, Discurso”. In: O ser e o tempo da poesia. São Paulo, Cultrix, Ed. Da Universidade de São Paulo, 2000.

 

CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.

 

Barros. Ensaios Fotográficos. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000.

 

GRÁCIA-ROFRIGUES, K. De corixos e de veredas: a alegada similitude entre as poéticas de Manoel de Barros e Guimarães Rosa. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara, 2006.

 

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

 

[1]Manoel Wenceslau Leite de Barros (Cuiabá, 19 de dezembro de 1916) é um poeta brasileiro do século XX, pertencente, cronologicamente à Geração de 45, mas formalmente ao Modernismo brasileiro, se situando mais próximo das vanguardas europeias do início do século e da Poesia Pau-Brasil e da Antropofagia de Oswald de Andrade. Recebeu vários prêmios literários, entre eles, dois Prêmios Jabutis. É o mais aclamado poeta brasileiro da contemporaneidade nos meios literários. Enquanto ainda escrevia, Carlos Drummond de Andrade recusou o epíteto de maior poeta vivo do Brasil em favor de Manoel de Barros. Sua obra mais conhecida é o "Livro sobre Nada" de 1996.

 

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