Letramento matemático no Ensino Fundamental: desafios da transição do pensamento concreto ao abstrato à luz dos indicadores do SAEB
Antonio Carlos de Lima Oliveira
Iolita Alves de Carvalho
Josiane Sérgio da Silva Miranda
Léa Antonia Corrêa da Silva Costa
Leidimar Brito da Silva Cunha
RESUMO:
O letramento matemático na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) transcende a dimensão instrumental, posicionando-se como requisito para a participação crítica no contexto social. Contudo, este artigo demonstra que o empreendimento pedagógico enfrenta um desafio persistente na transição do pensamento concreto para o abstrato nos anos finais do Ensino Fundamental. A análise dos dados de proficiência em Matemática do 5º ano do SAEB (2023b) revela uma média de 224,8, situando a maioria dos estudantes no limiar do Nível 4, onde habilidades de abstração inicial mal se consolidam, e apenas 53% atingem níveis mais complexos (Nível 5 ou superior). Este diagnóstico, confrontado com a Educação Matemática Crítica de D'Ambrosio, evidencia a falência de um currículo cartesiano focado na repetição. Argumenta-se que a superação desse quadro depende da adoção de abordagens inovadoras (TICs e jogos) e, sobretudo, da qualificação do professor como pesquisador da própria prática, capaz de exercer uma ética da diversidade e subverter o paradigma do treinamento, garantindo a formação holística e o avanço sustentável da proficiência nacional.
Palavras-chave: Letramento Matemático. Ensino Fundamental. Pensamento Abstrato. BNCC. SAEB.
Introdução
A Base Nacional Comum Curricular concebe o letramento matemático como fundamento da formação crítica dos educandos, para além do simples domínio de algoritmos e procedimentos (BRASIL, 2017). Há, entretanto, um obstáculo pedagógico relevante: a passagem do pensamento concreto ao abstrato. Essa transição configura-se particularmente desafiadora nos anos finais do Ensino Fundamental. Buscar abordagens que conjuguem rigor pedagógico e inovação torna-se, portanto, necessário.
O presente artigo examina essa interface, considerando a normativa expressa na BNCC, os processos cognitivos envolvidos na transição mencionada, as tendências pedagógicas contemporâneas e a formação de professores. Articula-se essa discussão aos indicadores de proficiência do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e do Programme for International Student Assessment (PISA), na perspectiva de contribuir para o debate sobre a educação matemática brasileira.
Desenvolvimento
Este estudo articula os desafios e possibilidades dessa interface. Examina a influência normativa da BNCC e as dinâmicas cognitivas envolvidas. Considera as potencialidades das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) e dos jogos educativos. Aborda a formação docente como elemento central. Relaciona esses aspectos aos indicadores do SAEB e do PISA.
Tal articulação visa fornecer elementos para o debate acadêmico e a prática docente. Esta reflexão adota viés analítico, não prescritivo. Pretende contribuir, de modo modesto, para o aprimoramento da educação matemática no país.
A BNCC, documento orientador das políticas curriculares nacionais, atribui ao letramento matemático uma centralidade que ultrapassa o domínio técnico dos conteúdos (Brasil, 2017). Enfatiza a capacidade interpretativa dos estudantes, sua competência argumentativa e a resolução de situações complexas. Sugere um deslocamento do enfoque tradicional. Amplia o letramento para abarcar conhecimentos conceituais, procedimentais e atitudinais necessários à construção de uma matemática crítica.
O percurso curricular proposto prevê uma progressão que culmina no desenvolvimento do pensamento abstrato. Busca a autonomia intelectual do aluno. Confronta-o com a complexidade de problemas diversos, situações que exigem mobilização de múltiplos saberes.
Essa compreensão mais ampla do Letramento Matemático coaduna- se com a visão de autores como D'Ambrosio (2009), para quem a matemática deve ser vista com:
Vejo a disciplina matemática como uma estratégia desenvolvida pela espécie humana ao longo de sua história para explicar, para entender, para manejar e conviver com a realidade sensível, perceptível, e com o seu imaginário, naturalmente dentro de um contexto natural e cultural (D'Ambrosio, p. 07, 2009).
Tal posicionamento sugere um deslocamento do enfoque tradicional e instrumental, ampliando o letramento para abarcar saberes necessários à construção a matemática aplicada.
A efetivação dessa formação holística, defendida pelo paradigma da Educação Matemática, exige superar métodos centrados na repetição e na padronização. Transitar do pensamento concreto para o abstrato constitui um dos desafios centrais da educação matemática no Ensino Fundamental, tanto do ponto de vista epistemológico quanto cognitivo. Esse processo demanda que o estudante abandone gradualmente o uso de objetos manipuláveis e representações imagéticas. Passa a apreender fórmulas, símbolos e relações de modo simbólico e generalizado (Piaget apud Carpintieri, 2004).
A complexidade dessa transição manifesta-se nos resultados das avaliações em larga escala. Tais resultados servem como diagnóstico da insuficiência das práticas pedagógicas em promover a transição cognitiva de forma eficaz. Os estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental alcançaram proficiência média em Matemática de 224,8 pontos no SAEB de 2023 (BRASIL, 2023a, 2023b). A Figura 1 apresenta esses dados.
Figura 1 – Proficiência Média dos Estudantes – 5º ano Ensino Fundamental - Matemática
Fonte: (Brasil, Inep, 2023a).
As tendências pedagógicas recentes investem nas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) e nos jogos educativos como instrumentos para ampliar a qualidade do letramento matemático, diante do quadro desafiador identificado. Softwares dinâmicos, ambientes virtuais interativos e plataformas que promovem visualizações matemáticas permitem que conceitos abstratos sejam representados e manipulados em níveis crescentes de complexidade. Isso amplia o repertório cognitivo dos alunos (MISHRA; KOEHLER, 2006).
Os jogos pedagógicos, por sua vez, estimulam o engajamento afetivo e cognitivo dos estudantes. Beneficiam especialmente aqueles que apresentam aversão ao ensino matemático tradicional. Favorecem o desenvolvimento de competências como raciocínio lógico, tomada de decisão e argumentação, por meio da contextualização autêntica de problemas (VOGL; HICKERSON, 2019).
A integração dessas inovações exige, entretanto, que o professor vá além do domínio técnico. Necessita desenvolver postura reflexiva e crítica para selecionar e adaptar esses recursos de forma coerente com a BNCC e as necessidades dos alunos. A eficácia desse processo vincula-se diretamente à qualidade da formação docente. Esta deve contemplar fundamentos matemáticos, teorias de aprendizagem e inovações pedagógicas (TARDIF, 2014).
A insuficiência na formação inicial e continuada para lidar com a transição cognitiva e a incorporação crítica de novas tecnologias pode ser correlacionada aos resultados insatisfatórios em avaliações como o SAEB. Romper essa inércia demanda que a formação cultive a ética da diversidade, conforme propõe D'Ambrosio (2009). O professor precisa tornar-se pesquisador da própria prática. Deve adotar perfil crítico e reflexivo.
A articulação entre políticas públicas, currículo e desenvolvimento profissional do professor constitui, portanto, fator decisivo para a elevação dos níveis de proficiência no país. O letramento matemático apresenta-se como desafio multifacetado. Requer intervenções pedagógicas que conciliem as potencialidades das TIC e jogos com a qualificação docente consistente.
Conclusão
O letramento matemático no Ensino Fundamental brasileiro revela-se desafio que demanda múltiplas frentes de atuação. Sua superação depende da articulação entre as normativas curriculares, os processos cognitivos dos estudantes, as inovações pedagógicas e o desenvolvimento profissional docente. A BNCC institui marco regulatório significativo. Sua aplicação, porém, tem demandado desdobramentos metodológicos e formativos ainda insuficientemente incorporados na prática escolar.
A transição do pensamento concreto ao abstrato, momento chave do desenvolvimento matemático, requer intervenções pedagógicas que considerem, simultaneamente, as potencialidades das TICs e jogos, e a qualificação crítica e persistente dos professores. O monitoramento e a avaliação desses processos, via indicadores como SAEB e PISA, não apenas apontam desafios, mas sugerem possíveis caminhos para a melhoria gradual e sustentável da educação matemática nacional.
Reconhece-se que o desenrolar dessa trajetória depende de múltiplos fatores interrelacionados, cujo entendimento e operacionalização implicam um esforço coletivo para a superação do paradigma do treinamento — que trata o aluno como um produto padronizável — e a adoção de uma postura de ética da diversidade (D'ambrosio, 2009) para a construção de uma sociedade mais equânime e intelectualmente desenvolvida.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Educação é a Base. Brasília, DF: MEC, 2017.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Escalas de proficiência do Saeb. Brasília, DF: INEP, 2020.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Matriz de referência de matemática do Saeb - BNCC. Brasília, DF: INEP, 2022. (Utilizado para a estrutura dos Eixos Cognitivos).
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Gráfico de Proficiência Média e Distribuição Percentual dos Estudantes por Níveis da Escala de Proficiência – 5º ano do Ensino Fundamental - Matemática. Dados do SAEB 2023a.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Resultados SAEB 2023. Brasília, DF: INEP, 2023b.
CARPINTIERI, Aldo Luiz. Piaget e a Educação Matemática. Campinas: Papirus, 2004.
D'AMBROSIO, Ubiratan. Educação Matemática: Da teoria à prática. 17. ed. Campinas, SP: Papirus, 2009.
MISHRA, Punya; KOHLER, Matthew J. Technological Pedagogical Content Knowledge: A Framework for Teacher Knowledge. Teachers College Record, New York, v. 108, n. 6, p. 1017-1054, 2006.
OECD. Programme for International Student Assessment (PISA) 2022 Results. Paris: OECD Publishing, 2022.
SKOVSMOSE, Ole. Obstáculos para uma Educação Matemática Crítica.
Revista Psicologia & Sociedade, Curitiba, v. 26, n. 4, p. 723-732, 2014.
TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Profissional. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
VOGL, Katrina; HICKERSON, Daniel. Educational Games and Mathematics Learning: A Meta-Analysis. Journal of Educational Psychology, Washington, v. 111, n. 5, p. 890-911, 2019.