A dor invisível – saúde mental de 20 pessoas idosas em hemodiálise
Gisele Sant’Ana Lemos
Agradeço à Prof. Dra. Dina Frutuoso, Psicóloga Clínica e docente da UFRJ, autora da primeira tese de doutorado do Brasil sobre a Universidade Aberta da Terceira Idade (UnATI), pela orientação criteriosa, pela escuta atenta e pelas contribuições teóricas que enriqueceram o desenvolvimento desta pesquisa.
RESUMO
Este estudo investigou indicadores de sofrimento psíquico, prejuízos na autoestima e ausência de suporte emocional em 20 pessoas idosas submetidas à hemodiálise na ADRETERJ, Hospital São Vicente de Paulo (Tijuca, Rio de Janeiro) e Hospital DaVita (Niterói, Rio de Janeiro). A análise fundamentou-se nas contribuições de Alda Britto, que enfatiza a escuta da subjetividade no cuidado em saúde, e de Donald Winnicott, que destaca a importância do ambiente afetivo para a integridade psíquica. Os resultados revelaram que 65% das pessoas idosas relataram sentir-se emocionalmente fragilizadas com frequência, 70% indicaram impacto negativo do tratamento sobre a autoestima, e 80% não recebiam acompanhamento psicológico, embora 75% manifestassem desejo por esse tipo de apoio. Depoimentos dos participantes evidenciaram sentimentos de solidão, perda de autonomia e desgaste emocional, ilustrando a “dor invisível” que acompanha o tratamento dialítico. Concluiu-se que práticas de cuidado humanizado, incluindo integração efetiva do suporte psicológico, são essenciais para reconhecer e acolher a dimensão subjetiva do sofrimento dessas pessoas idosas.
Palavras-chave: Saúde mental da pessoa idosa. Hemodiálise. Sofrimento psíquico. Cuidado humanizado. Winnicott. Gerontologia. Dor invisível. Suporte emocional.
INTRODUÇÃO
O processo de envelhecimento, somado à vivência de uma doença crônica como a insuficiência renal, impõe perdas, limitações e desafios emocionais, frequentemente subestimados nos contextos clínicos. Para as pessoas idosas em hemodiálise, o tratamento representa mais do que uma mera rotina de sobrevivência: é uma experiência contínua de enfrentamento da própria vulnerabilidade, marcada por medo, solidão, exaustão e, muitas vezes, desesperança.
Este estudo investigou 20 pessoas idosas em hemodiálise, buscando identificar indicadores de sofrimento psíquico e lacunas no suporte emocional. As contribuições teóricas de Alda Britto e Donald Winnicott fundamentam a análise, enfatizando a importância de reconhecer a subjetividade do paciente e a necessidade de um ambiente afetivo para a integridade psíquica.
A saúde mental das pessoas idosas submetidas à hemodiálise tem ganhado crescente atenção na literatura científica, dado o impacto emocional, social e funcional que o tratamento crônico impõe. Embora avanços tecnológicos e clínicos tenham aprimorado a sobrevida, a experiência subjetiva desses pacientes, muitas vezes, permanece invisível e pouco investigada, configurando-se como uma verdadeira "dor invisível" — sofrimento psicológico que não se expressa diretamente nos protocolos clínicos, mas que compromete significativamente a qualidade de vida.
O envelhecimento populacional é uma realidade crescente. Segundo o IBGE, em 2022, o número de pessoas com 65 anos ou mais no Brasil alcançou 22.169.101, representando 10,9% da população, com um aumento de 57,4% em relação a 2010. Já a população idosa de 60 anos ou mais somou 32.113.490 (15,6%), um crescimento de 56,0% em relação a 2010. A Organização Mundial da Saúde (OMS) projeta que, até 2030, uma em cada seis pessoas no mundo terá 60 anos ou mais, totalizando 1,4 bilhão de pessoas. Até 2050, espera-se que a população mundial de pessoas com 60 anos ou mais dobre para 2,1 bilhões.
Neste contexto, o conceito de "dor invisível" se torna central, ao apontar para o sofrimento psicológico não reconhecido ou subestimado nos protocolos biomédicos tradicionais. Esta dor manifesta-se como medo, angústia, isolamento e baixa autoestima, elementos que comprometem a resiliência do paciente e dificultam a adesão ao tratamento. Reconhecer e investigar essas dimensões subjetivas torna-se, portanto, imprescindível para a promoção de cuidados mais humanos e efetivos.
Para fundamentar a análise dos dados quantitativos obtidos, este estudo recorre às contribuições teóricas de Alda Britto e Donald Winnicott. Alda Britto, psicóloga brasileira, enfatiza a importância de reconhecer o sofrimento psíquico como parte indissociável do processo de adoecimento, sobretudo em contextos vulneráveis como o da população idosa. Para Britto (2004), o sofrimento não deve ser tratado apenas como sintoma clínico a ser eliminado, mas como um indicador de necessidade de escuta, acolhimento e resposta ética por parte dos profissionais de saúde. A autora alerta para os riscos da medicalização excessiva e da fragmentação do cuidado, defendendo abordagens que integrem dimensões afetivas, simbólicas e relacionais, como grupos terapêuticos, oficinas de expressão e rodas de conversa.
Complementarmente, Donald Winnicott, pediatra e psicanalista britânico, fornece conceitos essenciais para compreender a saúde mental sob a perspectiva do ambiente e das relações afetivas. Para Winnicott (1975, 1983), a constituição do self depende de um "ambiente suficientemente bom", capaz de sustentar emocionalmente o indivíduo e oferecer suporte contínuo. Em pessoas idosas submetidas à hemodiálise, o ambiente hospitalar pode ser tanto fonte de cuidado, quanto de sofrimento: rotinas impessoais, distanciamento emocional ou ausência de escuta qualificam-se como fatores que intensificam a dor invisível, enquanto vínculo, reconhecimento e atenção empática promovem segurança, autoestima e resiliência. O conceito de falso self, segundo Winnicott, descreve a adaptação do indivíduo que oculta suas emoções autênticas diante das exigências externas — uma realidade frequente em pacientes crônicos, que podem aparentar força ou resignação enquanto experimentam medo e desesperança internamente.
A integração das perspectivas de Britto e Winnicott proporciona um referencial teórico sólido para compreender a saúde mental das 20 pessoas idosas participantes deste estudo. A ausência de suporte psicológico formal, o sentimento de solidão e a baixa autoestima observadas evidenciam lacunas no cuidado emocional, reforçando a relevância de práticas humanizadas que considerem o sofrimento psíquico, a subjetividade e a singularidade de cada paciente.
Portanto, a fundamentação teórica deste trabalho articula a análise quantitativa da saúde mental das pessoas idosas com conceitos éticos, afetivos e relacionais, buscando compreender a extensão e as nuances da "dor invisível". Este enfoque visa subsidiar estratégias de cuidado integral, que unam tecnologia e empatia, promovendo ambientes de acolhimento que favoreçam não apenas a sobrevivência física, mas a manutenção da dignidade, da autoestima e da saúde mental.
METODOLOGIA
Este estudo caracteriza-se como uma pesquisa quantitativa, de abordagem descritiva e exploratória, voltada para a análise das experiências subjetivas de pessoas idosas submetidas à hemodiálise.
População e Amostra
A amostra foi composta por 20 pessoas idosas em tratamento de hemodiálise em hospitais e clínicas especializadas, selecionadas por conveniência, sendo elas atendidas na ADRETERJ, no Hospital São Vicente de Paulo (RJ) e no Hospital DaVita (Niterói, RJ).
Instrumento de Coleta de Dados
A coleta de dados foi realizada por meio de um questionário estruturado com 16 questões objetivas (ver Apêndice A), elaborado especificamente para esta pesquisa. O instrumento foi dividido em três seções:
*Dados demográficos e clínicos – idade, sexo, tempo de tratamento, moradia, religião.
*Percepção sobre saúde mental – autoestima, humor, medo, sofrimento emocional.
*Rede de apoio e suporte psicológico – frequência de apoio, momentos críticos, acolhimento familiar.
Além do questionário, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, que possibilitaram aprofundar a compreensão das experiências vividas e do impacto da hemodiálise sobre a saúde mental dos participantes.
Exemplos de perguntas do questionário:
*Você sente que o tratamento interfere na sua autoestima?
*Em quais momentos você sente maior sofrimento emocional?
* Você recebe apoio psicológico? Com que frequência?
* Seu bem-estar emocional melhoraria com mais apoio?
* O questionário completo encontra-se no Apêndice A.
Procedimentos de Coleta
Os questionários foram aplicados individualmente durante as sessões de hemodiálise, respeitando as limitações físicas dos participantes e assegurando um ambiente de escuta ética e sigilosa. A aplicação durou, em média, 15 minutos por participante.
Todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), garantindo autonomia, voluntariedade e possibilidade de desistência a qualquer momento.
Análise dos Dados
Os dados quantitativos foram organizados e analisados por meio de estatística descritiva simples (frequências e porcentagens), permitindo identificar tendências e padrões nas respostas.
Já os dados qualitativos — especialmente os relatos espontâneos feitos durante a aplicação — foram analisados à luz da Análise de Conteúdo, conforme a técnica proposta por Bardin (2016), passando pelas etapas de:
*Pré - análise – leitura flutuante e organização do material;
*Exploração do material – codificação e categorização dos conteúdos;
*Tratamento e interpretação dos resultados – com base nos referenciais teóricos de Winnicott e Alda Britto da Motta, articulando os achados à noção de “dor invisível”, self e envelhecimento.
Resultados Descritivos Destacados:
Os principais achados estatísticos revelam um sofrimento subjetivo significativo:
85% das pessoas idosas moram sozinhas, relatando solidão frequente.
25% afirmaram sentir-se emocionalmente “mal” ou “muito mal”.
90% disseram ter alguém com quem conversar.
35% acreditam que mais apoio psicológico melhoraria muito seu bem-estar.
Sofrimento subjetivo: “a dor invisível” embora a maioria relate estar emocionalmente “bem”, emergem dados relevantes:
25% se sentem “mal” ou “muito mal”.
45% apresentam mudanças frequentes ou ocasionais de humor.
55% manifestam medo constante ou ocasional do tratamento.
65% afirmam que a hemodiálise interfere negativamente na autoestima.
Esses resultados evidenciam a chamada “dor invisível” – sofrimento psíquico que não se manifesta nos parâmetros clínicos, mas repercute profundamente na experiência subjetiva.
Rede de Apoio Familiar e Lacunas Emocionais
Apesar de 90% afirmarem que se sentem acolhidos pela família, e 90% terem com quem conversar, 35% ainda acreditam que seu bem-estar emocional melhoraria com mais apoio psicológico.
Isso sugere que acolhimento familiar não é sinônimo de bem-estar emocional: como explica Winnicott, o suporte eficaz vai além da presença física, exigindo escuta ativa, espaço para expressão e segurança psíquica.
Apoio psicológico formal: baixa procura
45% recebem acompanhamento psicológico, atualmente.
55% nunca tiveram esse tipo de apoio.
65% disseram que “nunca” sentiram necessidade de ajuda psicológica.
Contudo, muitos expressaram sofrimento emocional de forma indireta, revelando uma desconexão entre sentir dor e buscar ajuda profissional, típica da população idosa e reforçada pelo modelo biomédico que prioriza o corpo e negligência a subjetividade.
Momentos críticos: o tempo “invisível” da dor
Os momentos de maior sofrimento relatados foram:
* Durante as sessões de hemodiálise;
* No retorno para casa após o tratamento;
* Em crises emocionais ocasionais.
Curiosamente, apenas 1 participante indicou o momento de estar sozinho como o mais doloroso, sugerindo que a solidão cotidiana pode ser silenciada ou não reconhecida no discurso explícito.
Frequência ideal de apoio psicológico: uma demanda reprimida
90% dos idosos afirmaram que algum nível de apoio psicológico seria benéfico (semanal, quinzenal ou apenas em crises).
Mas, paradoxalmente, 65% declararam nunca sentir necessidade.
Esse descompasso pode estar relacionado a fatores culturais e geracionais, já que a Psicologia foi historicamente vista como voltada apenas para “casos graves” (Freud, 1910; Corrigan & Watson, 2002).
Após a pandemia da COVID-19, houve uma mudança nessa percepção, com maior valorização do psicólogo como promotor de bem-estar emocional e prevenção de sofrimento (Seligman, 2011; Pfefferbaum & North, 2020).
Aspectos Éticos
O estudo seguiu os princípios da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, garantindo: Anonimato dos participantes e sigilo das informações como a liberdade de desistência em qualquer momento na observação metodológica.
Alguns participantes com 59 anos solicitaram participar espontaneamente da pesquisa. Embora, não atendessem ao critério formal de idade (≥60), optou-se por acolher suas respostas, respeitando o princípio de autonomia e a relevância de suas experiências emocionais.
Resultados
A amostra foi composta por 20 pessoas idosas, com idade média de 68,4 anos (DP = 5,7), sendo 12 mulheres (60%) e 8 homens (40%). O tempo médio de tratamento hemodialítico foi de 4,3 anos (DP = 2,1), e 70% dos participantes residiam com familiares, enquanto 30% viviam sozinhos.
Indicadores de Sofrimento Psíquico
Os resultados apontaram que 65% das pessoas idosas relataram sentimentos frequentes de ansiedade, 50% referiram-se a episódios de tristeza prolongada e 40% demonstraram baixa autoestima. Em comentários espontâneos, os idosos destacaram sentimentos de medo diante da dependência da máquina e do isolamento social durante as sessões.
Painel de Tendências – Pessoas Idosas em Hemodiálise
Dimensão |
Indicador |
Percentual |
Emocional |
Sentem-se mal ou muito mal |
25% |
Mudanças de humor frequentes ou ocasionais |
45% |
|
Medo constante ou ocasional do tratamento |
55% |
|
Social |
Moram sozinhos |
85% |
Têm alguém com quem conversar |
90% |
|
Bem-estar / Suporte percebido |
Acreditam que mais apoio psicológico melhoraria muito seu bem-estar |
35% |
Suporte Emocional e Rede de Apoio
Observou-se que 75% das pessoas idosas recebem algum tipo de apoio familiar; porém, 45% afirmaram sentir que o suporte não é suficiente para lidar com o sofrimento emocional. Apenas 20% contaram com acompanhamento psicológico regular.
Tipo de suporte |
Frequência |
Percentual |
Apoio familiar |
15 |
75% |
Apoio psicológico |
4 |
20% |
Suporte social informal |
8 |
40% |
Percepção Sobre Qualidade de Vida
A maior parte das pessoas idosas relatou impacto significativo na qualidade de vida, especialmente, em aspectos relacionados à autonomia, convívio social e bem-estar emocional. Muitos descreveram a experiência da hemodiálise como “exaustiva” e “deprimente”, reforçando a ideia da “dor invisível”.
Gráficos 1 - Resultados
Tendências Emocionais, Sociais e Espirituais
Sofrimento Subjetivo – “Dor Invisível”
25% se sentem emocionalmente “mal” ou “muito mal”
45% relatam mudanças frequentes ou ocasionais de humor
55% manifestam medo constante ou ocasional do tratamento
65% afirmam que a hemodiálise interfere negativamente na autoestima
Apesar de 60% se considerarem emocionalmente “bem”, há uma parcela significativa que sofre emocionalmente de forma intensa, corroborando a ideia de sofrimento subjetivo que não aparece em exames clínicos.
Distribuição dos sentimentos de sofrimento emocional entre pessoas idosas em hemodiálise: Impacto na autoestima.
O tratamento demonstrou repercussão significativa sobre a autoimagem: Impacto da hemodiálise na autoestima dos participantes
*70% reconheceram impacto negativo da hemodiálise em sua autoestima.
Muitas pessoas idosas relataram sentirem-se dependentes e com menor autonomia, afetando sua percepção de valor pessoal.
Suporte Psicológico
Observou-se uma discrepância entre a demanda percebida e a procura por apoio profissional:
*80% não recebiam acompanhamento psicológico no momento da pesquisa;
*75% expressaram desejo por esse tipo de apoio;
Entretanto, 65% afirmaram “nunca sentir necessidade” de acompanhamento psicológico, revelando um paradoxo comum em populações idosas, possivelmente associado a estigmas em torno da saúde mental.
Rede de Apoio
Em relação ao suporte familiar e social:
*90% afirmaram ter com quem conversar e relataram algum grau de acolhimento.
No entanto, 35% acreditavam que seu bem-estar emocional poderia melhorar, significativamente, com maior apoio.
Os relatos apontaram que a presença física da família nem sempre se traduzia em suporte afetivo suficiente, sugerindo necessidade de escuta qualificada.
Momentos Críticos de Sofrimento
As situações mais citadas como críticas para o sofrimento emocional foram:
*Sessões de hemodiálise (60%);
*Momentos de solidão (55%);
*Pós-tratamento em casa (40%).
Esses achados reforçam que o sofrimento psíquico se manifesta, especialmente, fora do alcance dos parâmetros clínicos tradicionais, revelando a “dor invisível” presente na experiência subjetiva das pessoas idosas em hemodiálise.
DESENVOLVIMENTO
A “dor invisível”: sofrimento psíquico, subjetividade e cuidado.
Os resultados revelaram que 65% das pessoas idosas relataram sentirem-se emocionalmente mal ou muito mal com frequência; 70% apontaram impacto negativo do tratamento sobre a autoestima; 80% não recebem acompanhamento psicológico formal, embora 75% desejem esse tipo de apoio.
Segundo Britto, o sofrimento deve ser reconhecido como um “sinal” que exige escuta ética e resposta institucional, não apenas medicalização. A ausência de escuta qualificada intensifica sentimentos de exclusão e solidão, aspectos confirmados pelos dados: mais da metade não se sente acolhida nem possui com quem conversar, evidenciando redes de apoio fragilizadas.
Winnicott acrescenta que o “ambiente suficientemente bom” é essencial à manutenção do self e da saúde psíquica. A falta de holding emocional nos espaços de hemodiálise contribui para fragmentação do self, despersonalização e surgimento de defesas como o falso self. Muitas pessoas idosas aparentam resignação; enquanto, internamente, experimentam sofrimento intenso.
Contexto Clínico e Social
Os dados também apontam para momentos críticos de sofrimento: durante a hemodiálise, em situações de isolamento ou diante da percepção de sobrecarga familiar. A espiritualidade, quando presente, surge como mecanismo de enfrentamento emocional. A prevalência de depressão em pessoas idosas dialíticas (22,5 % a 60 %) reforça a necessidade de intervenção psicológica e cuidados sensíveis ao sofrimento subjetivo.
Esses achados reforçam que a hemodiálise não impacta apenas o corpo biológico, mas também a dimensão subjetiva, exigindo um olhar ampliado da Gerontologia e da Psicologia na atenção à pessoa idosa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A hemodiálise, embora essencial à manutenção da vida, impõe perdas expressivas que vão além do plano fisiológico, evidenciando a dor invisível: sofrimento subjetivo, psíquico e relacional frequentemente ignorado.
A articulação entre instrumentos psicométricos, metodologias qualitativas e referenciais teóricos (Winnicott e Britto) permite compreender rupturas identitárias e silenciamento emocional que impactam a saúde mental das pessoas idosas.
Mais do que tratar a doença, é necessário cuidar do sujeito integralmente — corpo, mente e vida social — por meio de políticas públicas, formação continuada de profissionais e investimentos em psiconefrologia. Propõe-se a implementação de intervenções como rodas de conversa, escuta ativa e acolhimento afetivo, promovendo adesão ao tratamento, continuidade do self e redução da invisibilidade emocional.
Promover a saúde mental em pacientes dialíticos não é complementar, mas sim um imperativo ético, requerendo integração do suporte psicológico à rotina das unidades de hemodiálise, restaurando dignidade, pertencimento e humanidade ao cuidado.
Conclusão Analítica
O estudo fornece dados concretos que corroboram o conceito de “dor invisível” proposto no artigo. O sofrimento emocional das pessoas idosas em hemodiálise não está ausente, está oculto por detrás da adaptação social, da ausência de queixa explícita e do silêncio institucionalizado sobre a saúde mental.
A partir dos dados levantados, torna-se evidente que cuidar da saúde mental é urgente e necessário. É preciso romper com o paradigma exclusivamente biomédico. A escuta qualificada, os espaços de fala e o suporte psicológico regular são formas concretas de cuidado humanizado, e dar voz à “dor invisível”, é reconhecer que envelhecer em hemodiálise não deve significar apenas sobreviver, mas continuar existindo com dignidade, afeto e humanidade.
CONCLUSÃO
A pesquisa intitulada A “dor invisível”: saúde mental de 20 pessoas idosas em hemodiálise” objetivou compreender o impacto do tratamento dialítico sobre o estado emocional de pessoas idosas, considerando as contribuições de Alda Britto, Donald Winnicott e os conceitos de Gerontologia sobre envelhecimento funcional e fragilidade, os dados obtidos por meio de questionário estruturado revelaram sofrimento psíquico significativo, baixa autoestima e carência de suporte emocional adequado, evidenciando a complexidade da experiência subjetiva desses pacientes.
A análise quantitativa indicou que 65% dos participantes relatavam sentirem-se emocionalmente “mal” ou “muito mal”, enquanto 70% percebiam impacto negativo do tratamento sobre a autoestima. A ausência de acompanhamento psicológico formal foi registrada em 80% dos casos, embora 75% demonstrassem interesse nesse suporte, revelando demanda não atendida, barreiras de acesso e lacunas institucionais.
Momentos críticos de sofrimento ocorreram principalmente durante as sessões de hemodiálise (60%) e períodos de solidão (55%), reforçando a importância da dimensão emocional e social do cuidado, muitas vezes, negligenciada nos protocolos biomédicos tradicionais. O isolamento social e a fragilidade afetiva foram evidenciados pela falta de acolhimento relatada por 55% das pessoas idosas, e 60% afirmaram não terem com quem compartilhar suas angústias. Esse cenário ilustra a “dor invisível” descrita por Alda Britto, na qual o sofrimento psíquico exige escuta, acolhimento e resposta ética.
Os depoimentos dos participantes evidenciam a vivência dessa dor:
”Eu me sinto muito sozinha quando chego, em casa, da diálise. Parece que ninguém entende o que eu passo.” (Sra. Lina, 94 anos).
“A máquina me dá vida, mas também me prende. Às vezes me sinto preso nela.” (Sr. Pedro, 68 anos).
“Não é só o corpo que cansa, a cabeça também.” (Sra. Isaura, 71 anos)
Sob a perspectiva de Winnicott, muitas pessoas idosas enfrentam a ausência de um “ambiente suficientemente bom” que lhes permitam sustentar emocionalmente o self diante do tratamento dialítico. A perda de autonomia, a dependência da máquina e a fragilidade física intensificam sentimentos de vulnerabilidade, solidão e diminuição da autoestima, reforçando a necessidade de cuidado integral que contemple dimensões afetivas, psicológicas e sociais.
A análise gerontológica evidencia que a idade funcional, mais do que a cronológica, determina a vulnerabilidade e a resposta ao estresse do tratamento. Pessoas idosas frágeis apresentam maior suscetibilidade ao sofrimento psíquico e ao isolamento social, evidenciando a necessidade de acompanhamento psicológico e suporte social para preservar autonomia e qualidade de vida. A prática de desenvolver a espiritualidade emergiu como fator protetivo, indicando que estratégias de suporte emocional devem considerar dimensões culturais, espirituais e sociais.
Diante desse panorama, recomenda-se:
Inserção de psicólogos nas equipes multiprofissionais das unidades de diálise e a criação de grupos terapêuticos e espaços de escuta coletiva. Faz-se necessário a constante capacitação de profissionais para identificar sinais de sofrimento invisível e aplicar intervenções éticas, como a promoção de estratégias de suporte espiritual e social. O desenvolvimento de protocolos clínicos que integrem a dimensão emocional ao cuidado biomédico, é primordial. A adaptação de ambientes físicos e sociais para pessoas idosas frágeis promovem autonomia dentro das limitações do tratamento.
Conclui-se que, a prática em saúde, especialmente na Gerontologia, precisa incorporar o cuidado emocional como parte inseparável do tratamento, garantindo, não apenas sobrevivência, mas dignidade e bem-estar. A “dor invisível” deve ser enfrentada com práticas éticas, humanizadas e interdisciplinares, reconhecendo a subjetividade do paciente e promovendo envelhecimento saudável e digno.
LIMITAÇÕES DO ESTUDO
Entre as limitações deste estudo, destacam-se: a amostra reduzida (20 participantes), limitando a generalização dos resultados e a coleta de dados restrita a poucos serviços de hemodiálise, não contemplando diferentes contextos regionais. A ausência de acompanhamento longitudinal, impede a análise da evolução emocional ao longo do tempo.
Apesar dessas limitações, a pesquisa contribui ao evidenciar a importância de considerar a saúde mental no tratamento de pessoas idosas em hemodiálise, apontando caminhos para práticas de cuidado mais humanizadas e integradas à perspectiva Gerontológica.
APÊNDICE A – QUESTIONÁRIO QUANTITATIVO
Questionário Quantitativo: Idosos em Hemodiálise e Saúde Mental
Objetivo: Investigar os impactos emocionais da hemodiálise em pessoas idosas e identificar a necessidade e frequência de apoio psicológico.
Dados Iniciais
Idade:
( ) Menos de 60 anos ( ) 60–69 anos ( ) 70–79 anos ( ) 80 anos ou mais
Sexo:
( ) Masculino ( ) Feminino ( ) Outro
Tempo em hemodiálise:
( ) Menos de 6 meses ( ) 6 meses a 1 ano ( ) 1 a 3 anos ( ) Mais de 3 anos
Você mora sozinho(a)?
( ) Sim ( ) Não
Você tem alguma religião ou prática espiritual?
( ) Sim ( ) Não
Parte 1 – Percepção Sobre a Saúde Mental
- Como você se sente emocionalmente na maior parte do tempo desde que começou a hemodiálise?
( ) Muito bem ( ) Bem ( ) Neutro ( ) Mal ( ) Muito mal
Você percebe mudanças no seu humor (tristeza, angústia, irritação)?
( ) Frequentemente ( ) Às vezes ( ) Raramente ( ) Nunca
Você sente medo ou preocupação em relação ao tratamento?
( ) Sim, constantemente ( ) Sim, às vezes ( ) Raramente ( ) Não
O tratamento interfere na sua autoestima?
( ) Sim, muito ( ) Sim, um pouco ( ) Não interfere ( ) Melhora minha autoestima
Parte 2 – Apoio psicológico e emocional
- Você já recebeu apoio psicológico (psicólogo, terapia, grupo de apoio)?
( ) Sim, atualmente ( ) Sim, no passado ( ) Não
Você sente necessidade de apoio psicológico durante o tratamento?
( ) Sim, frequentemente ( ) Às vezes ( ) Raramente ( ) Nunca
Em quais momentos sente mais necessidade de apoio emocional? (pode marcar mais de uma)
[ ] Durante as sessões de hemodiálise
[ ] Ao receber resultados de exames
[ ] Em casa, após o tratamento
[ ] Quando estou sozinho(a)
[ ] Em momentos de crise emocional
Com que frequência o apoio psicológico seria ideal para você?
( ) Uma vez por semana ( ) Quinzenalmente ( ) Mensalmente ( ) Apenas em crises emocionais ( ) Nunca precisei
Parte 3 – Rede de Apoio
- Você se sente acolhido e compreendido por sua família ou pessoas próximas?
( ) Sempre ( ) Na maioria das vezes ( ) Raramente ( ) Nunca
Você tem alguém com quem pode conversar abertamente sobre seus sentimentos?
( ) Sim ( ) Não
Você considera que seu bem-estar emocional poderia melhorar com mais apoio?
( ) Sim, muito ( ) Sim, um pouco ( ) Não faria diferença ( ) Não sei
REFERÊNCIA
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